"A mudança epistemológica alavancada pelos estudos culturais exige uma pedagogia que consiga contemplar uma nova noção de sujeito – não a de sujeito universal tal qual nós conhecemos – mas de um sujeito agregador de identidades e atravessado por múltiplas subjetividades."
Harold Bloom, em "O Cânone Ocidental", enquadra os defensores dos estudos culturais em uma "Escola do Ressentimento", acusando-os de tentar acabar com o cânone ocidental. Bettiol discorda:
"Em primeiro lugar, não empregaria a palavra ressentimento que remete a um sentimento de mágoa. Não se trata de uma simples mágoa por ter sido excluído ou de um recalque social, a questão é mais complexa. O estranhamento, a não identificação geram naturalmente um processo de insatisfação. Esse problema, a meu ver, reflete muito mais do que questões políticas, de classe, gênero ou etnia, ele passa também pelo ordem do metafísico. Vou mais além, a insatisfação já nasce enraizada em todo ser humano e a literatura sempre registrou as angustias, sempre foi palco de discussão do descontentamento humano. Aliás, o ato de escrever já é por si só um ato de insatisfação, que não foi inaugurado pelos estudos culturais, são os insatisfeitos que escrevem, os que sentem um enorme desejo de transformar o mundo em que vivem."
"Os estudos culturais denominados por Stuart Hall (2003, p.11) como uma forma de pensar a cultura, melhor seria acrescentar os vínculos entre cultura e poder, nos revelam a insatisfação do(s) sujeito(s), da sua luta pelo espaço de representação dentro da sociedade. Os estudos culturais deixam claro a necessidade, para aqueles que exercem o oficio da escritura, de negociar o espaço de enunciação, de definir o papel do sujeito dentro das relações transformadoras. Afinal, é mais do que sabido que quem maneja a pluma maneja o poder, a palavra e a sua força fundacional (ACHUGAR, 1998, p. 27). O ato de escrever é um ato de poder que exige um comprometimento ético por parte de quem escreve."
Os Estudos Culturais, como toda teoria, tem o poder de intervir na sociedade!
"Os estudos culturais conseguiram abrir “fendas” dentro do discurso oficial, desvelar as práticas culturais que norteiam nossas relações, denunciar como os bens simbólicos são trabalhados, manipulados, inculcados em nossa formação cultural, como essas práticas de representação constituem sujeitos humanos."
"A expressão utilizada por Nestor Garcia Canclini (1990, p. 326) – manifestação do poder oblíquo – pode ser relacionada à estratégia empregada pelos estudos culturais isto é, mesmo não conseguindo reformular a ordem imposta, os teóricos dos estudos culturais optaram por uma leitura oblíqua da sociedade, por um “ataque” por vias diagonais, por gerenciar os conflitos e repensar as relações culturais através de uma transgressão, de um desvio, sobretudo da linguagem, rompendo com as representações tradicionais de poder."
"A excelência literária sempre esteve, ainda que de forma camuflada, ligada à representatividade cultural. O próprio Bloom escolheu sua lista de obras clássicas baseado nos valores do cânone eurocêntrico. Houve mudanças, que não podem ser ignoradas, nas condições de produção intelectual, artística, no papel da cultura, apenas para mencionar as mais visíveis. Saberes novos exigem modelos diferentes, modelos que precisam ser gerenciados de outra forma. Os estudos culturais apesar de todos os rumores apocalípticos, revigoraram o cânone proporcionaram, através de suas inúmeras abordagens, um novo impulso e percepção dos estudos literários."
Os estudos culturais, com sua abertura interdisciplinar, apontam para a falência de dois modelos de gestão do saber: o positivista e o iluminista.
"Os estudos culturais denunciam a falácia do sujeito cognitivo universal discutindo o caráter problemático da identidade, a maneira como as identidades são formadas, transmitidas, a dificuldade dos grupos minoritários em se identificarem com a cultura dominante mostrando claramente a cultura como uma construção ideológica que sofre mudanças. Os estudos culturais acabam com qualquer pretensão de se falar em nome do universal apontando nosso discurso como uma prática cultural localizada."
"Todavia, a crítica de Bloom é muito pertinente no que diz respeito a um grupo que se alojou no coração dos estudos culturais, sobretudo de orientação norte-americana, conhecido como grupo PC ou do “politicamente correto”. A trajetória desse grupo é internacionalmente conhecida pela sua detestável patrulha ideológica, grupo este que nasceu com ares pseudo-democráticos mas que pelas suas ações se revelou autoritário e defensor de um totalitarismo dos mais tacanhos (...) procura-se transferir posicionamentos intactos de uma conjuntura para outra, tenta-se cristalizar esses posicionamentos como se fossem imutáveis. Para o PC, conhecimento válido é o transmitido pela própria experiência como se a experiência não tivesse limites e as idéias fossem determinadas unicamente pela experiência"
"penso os estudos culturais não como um projeto político mas como uma teoria que trouxe discernimento à prática política, como um fenômeno intertextual complexo que nos revelou as intertextualidades dos textos em suas posições institucionais, os textos como inegáveis fontes de poder, vejo como mais uma ferramenta teórica que nos permite fazer um exame dos papéis culturais dos quais a literatura é investida, as identidades que constitui"
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Histórias da teoria: os estudos culturais e as teorias pós-coloniais na América Latina
Os estudos culturais surgem nos anos 50, na Grã-Bretanha, derivados do leavisismo. Este combatia a cultura de massas, e tentava redisseminar o "capital cultural": conhecimento e apreciação literários baseados numa "grandes tradição", cânone da alta cultura. Seus dois expoentes são Richard Hoggart e Raymond Williams, ambos oriundos das classes trabalhadoras inglesas.
1964> Center for Contemporary Cultural Studies! estuda relações entre a cultura contemporânea e a sociedade, isto é, suas formas culturais, instituições e práticas culturais, e suas relações com a sociedade e mudanças sociais. As funções políticas da cultura e manifestações da cultura de massa.
- Os trabalhos da Escola de Frankfurt sobre a Indústria Cultural influenciaram os Estudos Culturais, "embora a teoria crítica alemã negligencie um aspecto essencial para os EC: as formas nas quais a indústria cultural, mesmo a serviço do capital, pode propiciar oportunidades para a criatividade individual e coletiva" (p. 3)
A semiótica, o marxismo estrutural e a teoria francesa (estruturalismo, semiologia e pós-estruturalismo) também são influentes.
De acordo com HOLLANDA, citado por Prysthon, os EC "passam do estudo das comunidades -- articuladas como classes ou subculturas -- para o estudo dos grupos étnicos, de mulheres, raciais, e tornam-se a voz do Outro na academia" (p. 4).
PÓS-MODERNO X PRÓS-ESTRUTURALISMO... não são a mesma coisa! porém há intersecções.
"a pósmodernidade é a época onde já não existem mais metanarrativas, onde os jogos de linguagem, múltiplos e heteromórficos predominam numa sociedade pontilhista, na qual é impossível estabelecer regras gerais." (p. 5)
"O pós-estruturalismo seria, então, uma fronteira da modernidade (com tudo o que implica nessa condição de fronteira) e não a encarnação teórica do pósmodernismo; por mais que por ser um modernismo nos seus limites carregasse necessariamente um potencial autodestrutivo e autocrítico, marcado pela transgressão dos limites da linguagem." (p. 5)
PÓS-MODERNO: dominante cultural do capitalismo transnacional, paradigma ideológico do neoliberalismo, tendência artística de certas facções de elites. Porém, o conceito se mostra insuficientes "no sentido de apresentar e propor o remapeamento teórico do mundo, uma reorganização dos cânones culturais, uma des-hierarquização geopolítica." (p. 6)
"se o pós-moderno dependeu excessivamente de uma visão positiva do capitalismo tardio e do neoliberalismo, o terceiro mundismo dos anos 60 provou ser ultrapassado demais politicamente e simplesmente ineficaz do ponto de vista econômico" (p. 7)
Percebe-se, no fim dos anos 80, que o Terceiro Mundo não se trata de um bloco homogêneo. "Pós-colonial, pós-colonialismo, substituem Terceiro Mundo em esferas bem específicas, a saber nos campos da produção acadêmica e polêmicas intelectuais." (p. 7)
"emergiu outro tipo de atitude terceiro-mundista: aquele que tenta usar a “diferença”, a “alteridade” como ponto de partida para a integração ao modelo capitalista global, especialmente em relação aos bens culturais. O mercado de cultura mundial abriu-se ao chamado multiculturalismo e os efeitos de uma cada vez maior presença de bens simbólicos periféricos junto à cultura de massa internacional" (p. 7)
Com o surgimento do pós-colonial em substituição à ideia de Terceiro Mundo, surge a ideia de "diferença" e "alteridade" como chave para a abertura do mercado cultural mundial à circulação de bens simbólicos periféricos, ou ao "multiculturalismo".
" O multiculturalismo, enquanto fenômeno ligado à disseminação de massa das culturas locais, não poderia mais ser visto sem reservas: mais do que iniciativas independentes nacionais e populares ou do que uma utópica rearticulação do local em escala global, ele também representava um jogo de interesses recíprocos por parte de empresas, grupos políticos e indivíduos. Outro receio provocado pela disseminação generalizada de culturas tão diversas e peculiares foi precisamente o efeito homogeneizador poderia haver sobre as culturas locais." (p. 8)
Essa nova perspectiva acerca dos países periféricos representou uma mudança maior: enquanto o Terceiro Mundo, dos anos 60 e 70, tinha um viés libertário, militante, para a criação de alternativas culturais, a partir dos anos 80 as estratégias de mercado transnacional tomaram seu lugar. As teorias sobre o Terceiro Mundo (pois seus países não partilhavam os mesmos problemas nem tinham as mesmas necessidades ou ideário revolucionário-utopista... "o legado de pobreza já não era suficiente para levantar a voz coletiva terceiro-mundista), portanto, também teriam que mudar; assim, ocorreu uma transferência de campos do conhecimento: "o que antes era o quase absoluto domínio das ciências políticas e sociais agora faz parte da história e mais especificamente da história da cultura, estudos culturais e literários" (p. 8).
"O multiculturalismo (como inicialmente foi chamada a disseminação de diversas culturas no Ocidente no final dos anos 80 e que foi ganhando outros rótulos a partir dos anos 90 como “estado híbrido”, “mundialização”, “globalização cultural” (CANCLINI,1990; ORTIZ, 1994; FEATHERSTONE, 1995)) ultrapassou as fronteiras de um mercado cultural de massas mais sofisticado e acabou por tomar conta também da academia — principalmente dos círculos anglo-americanos- como fenômeno pós-moderno (visto assim como conseqüência de um dos traços da pós-modernidade — a descentralização). E assim como aconteceu com tudo relativo à pós-modernidade na primeira metade dos anos 80, todas as questões relacionadas com o multiculturalismo ocuparam lugar de destaque nas principais discussões culturais na segunda metade da década de 90. Basicamente enquanto discurso, mas um discurso altamente influente dentro da política universitária primeiro-mundista. Por exemplo, quando o multiculturalismo e os discursos sobre ele se mesclaram às tendências “politicamente corretas” da sociedade contemporânea e diferenças culturais, raciais e sexuais passaram a ser critérios positivos na escolha de cargos para professores no final dos anos 80, principalmente na academia norte-americana." (p. 8-9)
"Por um lado, o debate sobre multiculturalismo tem resvalado desde então para uma oposição extrema entre conservadores e radicais multiculturalistas, acabando por isolar cada parte nas suas tentativas de provar a superioridade de sua cultura. Por outro, foi reaceso o interesse cultural no Outro para além da psicologia, antropologia, lingüística e etnografia. O Outro que emergiu no final dos anos 80 nos cursos universitários europeus e norte-americanos foi sobretudo o “Terceiro Mundo” (claro, também a mulher, os gays e lésbicas, os negros, mas para os propósitos de delimitação do território pós-colonial é a reemergência da temática terceiro-mundista—com outros nomes— que vai ser importante aqui). E em especial assuntos concernentes às relações entre “Império” e “Colônias”, ou “ex-colônias”." (p. 9)
Com relativo sucesso de marketing nos EUA e Grã-Bretanha, esse Outro que despertou interesses de natureza cultural, "científica" e também mercadológica, e foi objeto de diversas teorias culturais no fim do século XX, era o pós-colonial. Assim como o Terceiro Mundo, é uma teoria que não deixa de ser homogeneizadora, mas "ao impor o colonialismo como algo “passado”, inevitavelmente o componente utópico-revolucionário foi sendo suprimido desta proposta teórica" (p. 9). No lugar de Terceiro Mundo, passou-se a usar o termo periferia; e ao considerar o pós-colonial como contexto comum, assumia-se que o fenômeno seria analisado em relação a outras experiências e dados do mesmo contexto; o que também poderia incluir países de Primeiro Mundo, pelo fato de não se tratar mais de condições geográficas, e sim temporais.
"O que parece inevitavelmente controverso quando a condição colonial, em vários casos, ainda persistia (e ainda persiste). Ademais, a teoria pós-colonial não considerava um fator fundamental para a maioria dos países “terceiro-mundistas” ou “pós-coloniais”: o neocolonialismo. Somemos a isso o fato de que há países “pós-coloniais” que eram “pós-coloniais” há mais de dois séculos (os Estados Unidos, por sinal) — o que não apaga o seu passado colonial— e de que cada experiência colonial é um experiência colonial diferente (há diversos tipos de colonizadores, colônia e colonizados), e temos para a teoria pós-colonial uma premissa inescusavelmente vulnerável" (p. 10)
Mas, ao valorizar a "história da cultura dos oprimidos" e des-hierarquizar a origem dos teóricos, o pós-moderno também possui um olhar utópico, e diversos teóricos passaram a ocupar espaços no universo acadêmico primeiro-mundista... no entanto, quase todos tinham algo em comum: a língua inglesa, o que explica porque o conceito de pós-colonial acabou por se acomodar "dentro dos limites de um território linguístico determinado". (p. 11)
Os estudos pós-coloniais e Estudos Culturais promoveram transformações inéditas, possibilitando a descentralizção e o redimensionamento dos câneones culturais, bem como o estabelecimento do políticas internacionais da teoria.
" Contrastados com disciplinas mais tradicionais como História da Cultura, Antropologia, Teoria Literária, os Estudos Culturais, especialmente a partir dos anos 90, forneceram um ponto de vista muito mais abrangente —sendo simultaneamente bem específico na sua historicidade—, condensaram um instrumental capaz de dar conta da contemporaneidade de maneira desmistificadora e des-hierarquizada e serviram como ponto de partida para o estabelecimento de uma política da diferença que buscava desafiar a hegemonia nordocêntrica, redefinir a modernidade a partir de novos termos, apontar alternativas para um padrão cultural baseado na cópia e na imitação e garantir voz a sujeitos que anteriormente não tiveram direito a voz." (p. 12)
Numa apreensão pós-moderna da história, os Estudos Culturais revisaram conceitos e apresentaram alternativas teóricas aos modelos econômicos, sociais e políticos do "Primeiro Mundo". " Neste contexto, a importância da revisão de um conceito como o de cosmopolitismo parece inegável inclusive por suas potencialidades de aplicação como uma terminologia muito mais precisa e aceitável que “relativismo cultural” ou “internacionalismo”." (p. 12)
"O cosmopolitismo tal como vinha se manifestando ao longo do século XX na periferia estava profundamente modificado e virtualmente superado no fim do milênio. Uma conceituação renovada do cosmopolitismo teria que levar em conta pelos menos alguns dos seguintes fatores: 1) uma nova configuração urbana que torna caduca a noção da vivência da cidade como base do cosmopolitismo: algumas das maiores metrópoles do mundo não estão no centro, mas na periferia —Cidade do México, Jacarta, São Paulo, Istambul; 2) a dissolução do chamado Segundo Mundo; 3) a emergência dos países asiáticos como potências econômicas; 4) a hibridização cultural da maioria dos países periféricos e especialmente dos países centrais; 5) o crescente isolamento cultural dos países muçulmanos; 6) a intensificação do terrorismo em vários pontos do planeta, sobretudo a partir do 11 de setembro; 7) a diáspora dos intelectuais da periferia para o “Primeiro Mundo”; 8) o avanço gigantesco das redes de comunicação. Estes seriam os principais elementos para que se fundem novos parâmetros para as culturas periféricas" (p. 13)
A teoria pós-colonial propõe a "descolonização da História e da teoria, uma abordagem de fato alternativa do Ocidente." (p. 13), e reinsere o "debate da identidade nacional, da representação, da etnicidade, da diferença e da subalternidade no centro da história da cultura mundial contemporânea" (p. 13). Ao contestar a concepção estabelecida de representação, abordando o subalterno, atacou a hegemonia ocidental; reavaliou os valores do cosmopolitismo convencional, reacomodou o cânone cultural.
"O cosmopolitismo pós-moderno, então, foi se constituindo como um cosmopolitismo quase que necessariamente periférico, tanto pelo problema da representação mencionado anteriormente, como pela óbvia e inerente experiência cosmopolita vivida no cotidiano da maioria das regiões periféricas. Embora isso se aplique à experiência do mundo urbanizado como um todo. Grandes metrópoles “nordocêntricas” como Nova York, Londres e Paris também têm no seu cotidiano uma experiência que inegavelmente se chama cosmopolitismo periférico. As zonas de contato entre “Primeiro” e “Terceiro” Mundos vão se multiplicando nas duas regiões e, como seria de se esperar, no destroçado “Segundo”. A existência de bolsões de “Terceiro Mundo” no “Primeiro Mundo” e seu contrário, o “Primeiro Mundo” no “Terceiro Mundo” são não apenas a confirmação do cosmopolitismo periférico, como também uma condição sine qua non do capitalismo transnacional e o sinal de que um “mundo” somente está cada vez mais parecido na sua diversidade. Justamente no espaço intersticial, no fluido território intermediário, nessa zona de negociação entre “mundos”, é que está localizado o arcabouço cultural que serve de objeto para a teoria pós-colonial e o instrumental teórico para analisá-lo." (p. 14-15)
" É um ponto de observação privilegiado no sentido da multiplicidade desse espaço intermediário. Mesmo que tantas outras teorias e estéticas já houvessem problematizado conceitos como representação, identidade, alteridade, hibridismo, colonização, Ocidente, Oriente; com o pós-colonialismo esses elementos foram colocados num marco de referências que, ao invés de simplesmente inverter ou descartar termos e hierarquias, possibilitou questioná-los na sua essência e na sua malha de inter-relações, propôs pensar as condições de possibilidade, continuidade e utilidade da sua construção." (p. 15)
"Postcoloniality represents a response to a genuine need, the need to overcome the crisis of understanding produced by the inability of old categories to account for the world. (DIRLIK, 1994, 352)
O que não corresponde a dizer que as teorias pós-coloniais foram teleologicamente positivas em relação à pós-modernidade ou às micropolíticas de final de milênio. Não se tratava de simplesmente ser ingenuamente “otimistas” por causa da globalização, por causa do hibridismo cultural e por uma suposta superação da experiência colonial, ou, no campo da estética, de tentar inverter os valores do cânone à moda da “antropofagia” brasileira modernista, por exemplo, assim proclamando a superioridade do periférico, do “terceiro mundista”. O pós-colonialismo tampouco foi o mero reflexo teórico das tendências politicamente corretas surgidas na academia primeiro-mundista a partir do final da década de 80." (p. 15)
"No caso da América Latina, o pós-colonialismo vai estar irremediavelmente associado às teorias pós-modernas e ao discurso pós-estruturalista. Aí, a teoria pós-colonial começou a se desenvolver sobretudo como resposta às questões mais diretamente ligadas à modernidade e ao desenvolvimento social da região, além de ser um instrumental auxiliar relevante para os Estudos Culturais. Neste contexto, sobressaiu-se especificamente a linha de trabalho sobre o hibridismo na cultura latino-americana. Hibridismo, híbrido, hibridização foram conceitos-chave dos Estudos Culturais latino-americanos dos anos 90, prolongando discussões que haviam iniciado na abordagem do pós-moderno latinoamericano na década anterior. Neste contexto, a obra de Néstor García Canclini ocupa um posto extremamente influente no debate sobre o estado híbrido da cultura latino-americana. Seu livro Culturas híbridas— Estrategias para entrar y salir de la modernidad postulava a necessidade de uma abordagem “transdisciplinar” para a compreensão da cultura latinoamericana contemporânea, esta fundamentalmente marcada por uma intensa “heterogeneidade multitemporal”. Canclini tenta ademais redefinir a modernidade —e tangencialmente a pós-modernidade— tendo em conta os processos de hibridização da América Latina.
Las reconversiones culturales que analizamos revelan que la modernidad no es sólo un espacio o un estado al que se entre o del que se emigre. Es una condición que nos envuelve, en las ciudades y en el campo, en las metrópolis y en los países subdesarollados. Con todas las contradicciones que existen entre modernismo y modernización, y precisamente por ellas, es una situación de tránsito interminable en la que nunca se clausura la incertitumbre de lo que significa ser moderno. (CANCLINI, 1990, 333)" (p. 16)
"Torna-se evidente a preocupação latino-americana com os conceitos relacionados com a pós-modernidade no final da década de 80 e ao longo da década 90, principalmente a primeira metade. Tal preocupação decorre indubitavelmente da complexidade da modernização desigual e em descompasso com o centro (o que não nega necessariamente a desigualdade e o descompasso da modernização no centro também). A modernização e todos os discursos que a bordeiam —modernidade, modernismos, pós-modernidade, pós-modernismos— evidentemente formam o eixo principal dos Estudos Culturais latinoamericanos. Entretanto, são as condições da modernização latino-americana no final do século XX que vão ser focos de interesse dos teóricos latino-americanos. Nessas condições estão implicados o hibridismo, o ser periférico, as noções de caráter nacional, globalização, colonialismo e dependência." (p. 18)
"Como nos Estudos Pós-coloniais de língua inglesa, nos Estudos Culturais latinoamericanos do final de século também estava em jogo uma teoria da representação que necessariamente tem que levar em conta o problema da subalternidade." (p. 19); O debate pós-moderno trata, precisamente, da crise de centralidade do Ocidente" (p. 20)
Na conclusão de sua revisão teórica, Prysthon observa que "é preciso tomar cuidado sobretudo com a apropriação feita pelo neoliberalismo do discurso da diferença. Faz parte do próprio princípio de manutenção da hegemonia a apropriação das diferenças. A identidade cultural latino-americana é, portanto, apropriada por um sistema “multiculturalista” por sua “diferença”, mas que de fato seria apenas uma “diferença” a mais. Em certo sentido, o neoliberalismo admite, então, a diferença simplesmente porque estas formam um quadro de igualdade, um sistema de “diferenças uniformes”." (p. 21)
"Por outro lado, cabe lembrar —algo que já foi mencionado acima— que um sistema que valoriza a diferença, estabelece uma espécie de valor positivo para sociedades culturalmente mais heterogêneas, caso da América Latina. O que por sua vez proporciona as abordagens celebratórias as quais mencionamos anteriormente. Ou seja, simultaneamente ao reconhecimento das possibilidades desse processo, há que se levar conta também os perigos da inversão de hierarquias culturais ou absolutização da diferença." (p. 21)
É necessário dar ao sujeito da diferença o direito de negociar suas próprias condições de controle discursivo, de praticar sua diferença no sentido intervencionista de rebelião e distúrbio, pois...
"Celebrating difference as exotic festival —a complement of otherness destined to nuance, more than subvert, the universal law— is not the same as giving the subject of this difference the right to negotiate its own conditions of discursive control, to practice its difference in the interventionist sense of rebellion and disturbance as opposed to coinciding with the predetermined meanings of the official repertory of difference. (RICHARD, 1993, 160)" (p. 22)
"Além disso, o hibridismo, a diferença e o reconhecimento de heterogeneidade cultural latino-americana serviram ao longo das duas últimas décadas pelo menos como um princípio de contestação muito vago da hegemonia nordocêntrica, que os mais pessimistas não hesitam em subestimar como parcelas minúsculas de uma ideologia da globalização que serve a propósitos neoliberais. Contudo, os discursos tecidos no entrelugar, as teorias baseadas nas culturas periféricas, as políticas da diferença apontam efetivamente para um entrelaçamento entre experiência cultural, a prática da crítica e o terreno da política, para um transbordamento da cultura para fora do campo estético. Vão sugerindo, assim, um campo fortemente marcado pela utopia: a utopia dos discursos da heterogeneidade, dos sonhos singulares, de um entrelugar complexo e híbrido. Ou seja, discursos que, num paradoxo sempre intrigante, almejam certa harmonia nas diferenças. E assim como a utopia depende da impossibilidade da sua realização, o teórico do entrelugar sabe que está permanentemente denunciando a impraticabilidade de seu projeto." (p. 22)
"É uma espécie de dever do crítico de cultura, do teórico da contemporaneidade, resgatar o projeto do discurso da diferença, vendo no entrelugar – concebido não mais como inversão do cânone, como “privilégio” da periferia – as possibilidades de diálogo entre culturas. Seria o ato transgressor (no melhor sentido) da tradução cultural, como a define Bhabha.
Se hibridismo é heresia, blasfemar é sonhar. Sonhar não com o passado ou o presente, e nem com o presente contínuo; não é o sonho nostálgico da tradição nem o sonho utópico do progresso moderno; é o sonho da tradução, como sur-vivre, como “sobrevivência”, como Derrida traduz o “tempo” do conceito benjaminiano da sobrevida da tradução, o ato de viver nas fronteiras. (BHABHA, 311)" (p. 22)