"Modernidade, Pluralismo e Crise de Sentido" (Luckmann e Berger, 1o capítulo)

A suposição de que há uma nova constituição social do sentido da vida humana nos tempos modernos que lançam o sentido é, justamente, o que daria grande poder de sugestão e de convicção à ideia de que a vida humana se encontra em uma crise inédita na sua história, tal qual creditam os críticos modernos e pós-modernos.

Para compreender melhor as mudanças históricas de certas formas de sentido, Berger e Luckmann fazem algumas considerações antropológicas acerca dos pressupostos gerais e estruturas básicas da significância da vida humana. Nas análises sociológicas atuais, se pressupõe sentido e significância como motivo do agir humano e como pano de fundo sobre o qual se projeta tal crise de sentido da modernidade.

O SENTIDO se constitui na CONSCIÊNCIA humana - consciência do INDIVÍDUO que se individualizou num corpo e se tornou pessoa por meio de processos sociais. São características essenciais de nossa espécie: consciência, individualidade, corporalidade específica, sociabilidade, formação histórico-social da identidade pessoal.

Mediante as operações gerais da consciência, constroem-se as múltiplas significâncias da EXPERIÊNCIA e da AÇÃO na vida humana. A CONSCIÊNCIA é sempre em relação a algo; dirige sua atenção para um objeto, um objetivo. Esse OBJETO intencional é constituído por diversas realizações de síntese da consciência.

Quando o objeto se trata de percepções, memórias ou imaginações, aparece na estrutura geral da consciência. O "tema" desse objeto estende um campo temático ao redor do núcleo, cercado por um horizonte aberto. É no horizonte que se dá a consciência da própria corporalidade, que também pode ser tematizada. A sequência de temas interrelacionados pode ser chamada de VIVÊNCIAS; estas não são significativas em si, mas são o fundamento sobre o qual pode surgir o SENTIDO.

As vivências que não ocorrem simples e independentemente, para as quais o EU volve sua atenção, ganham um grau maior de definição temática. Tornam-se EXPERIÊNCIAS delineadas.

 tema tema tema  
tema (objeto) tema
tema tema tema



TEMAS INTERRELACIONADOS 
=
 "VIVÊNCIAS" -> fundamento sobre o qual pode surgir o sentido  

VIVÊNCIAS para as quais o EU volve sua atenção possuem maior definição temática - são experiências delineadas! - mas essas experiências por si só ainda não tem sentido.

Quando um núcleo de experiência se separa da base da vivência, a consciência capta a relação desse núcleo com outras experiências. Essas relações podem ser de igual, semelhante, diferente, igualmente bom, diferente e ruim... etc. Assim, se constitui o grau mais elementar de SENTIDO.

O sentido não existe em si, mas sempre possui um objeto de referência. Assim, é uma forma complexa de consciência; a consciência de que existe uma relação entre as experiências. De forma inversa, o SENTIDO de EXPERIÊNCIAS - e também de AÇÕES - é construído por especiais realizações "relacionais" de consciência.

A experiência atual pode ser relacionada com uma experiência anterior, e geralmente é relacionada com um TIPO, um ESQUEMA de experiência, uma máxima comportamental, uma legitimação moral, derivados de muitas experiências e armazenados no conhecimento subjetivo ou tomados do acervo social do conhecimento.

"Por mais enredada que possa parecer a fenomenologia das realizações múltiplas da consciência, seus resultados são os simples elementos significativos de nossas experiências de todo dia. Assim, por exemplo, na vivência de uma flor, há uma forma típica, relacionada a uma qualidade típica de aroma, tato e uso. Num direcionamento da atenção, a vivência se torna experiência, a experiência é colocada numa relação com outras experiências (tantas flores), ou relacionada a uma classificação tirada do acervo social do conhecimento (cravo dos Alpes) e, finalmente, poderá ser integrada talvez num plano de ação (colhê-la e levá-la à amada). Neste processo são integrados vários tipos classificatórios (cravo dos Alpes, amada) num esquema (colher e levar a) e fusionados numa unidade mais complexa, porém ainda cotidiana de sentido. Se, finalmente, o projeto não é levado à prática porque conflita com uma máxima comportamental baseada na moral (não colher! flor rara!), chega-se a uma decisão e se configura um nível superior de sentido por meio da progressiva ponderação de valores e interesses" (p. 16).

Há um duplo sentido no agir e na ação: enquanto o sentido do agir atual é PROSPECTIVO, a ação realizada é RETROSPECTIVAMENTE significativa. O agir é orientado no sentido de um objetivo pré-projetado, e o projeto é uma utopia. Tal projeto é avaliado, seus passos são ponderados, à medida que "o processo não se tornou conhecido por meio de acoes semelhantes do passado e, assim, transformado em hábito" (p. 16). Já a ação concluída, seja bem-sucedida ou fracassada, pode ser comparada com outras, entendida, explicada ou justificada. "A ambiguidade e a complexa estrutura de sentido caracterizam toda ação, mas na rotina cotidiana as características podem parecer indistintas" (p.17)

"Evidentemente também o agir social tem esta estrutura de sentido, mas adquire dimensões adicionais por meio de elementos que lhe são próprios: imediaticidade ou mediaticidade, reciprocidade ou unilateralidade. O agir social pode ser direcionado a pessoas presentes ou ausentes, a mortos e não nascidos; pode querer abordá-los em sua individualidade, ou como tipos sociais de diferentes graus de anonimidade, ou mesmo como simples membros de grupos sociais. Pode visar a uma resposta ou não - pode haver resposta ou não. Pode ser intencionado como único, ou visando à repetição regular ou prolongação no tempo. Nessas diferentes dimensões de sentido é que se constrói a significância complexa do agir social e das relações sociais" (p. 17). É somente no agir social que se forma a identidade pessoal do indivíduo, e a vida cotidiana é permeada pelo agir social.

"Vivências puramente subjetivas são o fundamento da constituição do sentido: estratos mais simples de sentido podem surgir na experiência subjetiva de uma pessoa. Mas estratos superiores de sentido e uma estrutura mais complexa de sentido pressupõem uma objetivação do sentido subjetivo no agir social" (p. 17-18).

Está na constituição subjetiva do sentido a origem de todo acervo social do conhecimento. A maioria dos problemas com os quais o indivíduo se defronta também se apresenta na vida de outras pessoas. Assim, as "soluções dos problemas" são relevantes não só subjetiva, mas também intersubjetivamente.

"Ou os problemas surgem no agir social interativo, de modo que também as soluções sejam encontradas em comum, ou são objetivados numa das diversas formas possíveis e tornados acessíveis a outros: em sinais, instrumentos, construções, mas sobretudo em formas comunicativas de linguagem" (p. 18).

Quando o sentido objetivo de experiência e ação é separado da unicidade de "situação de origem" por meio de objetivações, ele se oferece como significado típico para aceitação num acervo social de conhecimento. Ações podem, então, ser transformadas em instituições sociais quando as pessoas passam a reagir da mesma forma a desafios semelhantes e esperam o mesmo de outras pessoas.

"A formação de reservatórios históricos de sentido e de instituições alivia o indivíduo da aflição de ter de solucionar sempre de novo problemas de experiência e de ação que surgem em situações determinadas. Se a situação concreta for idêntica nos traços essenciais com outras constelações já conhecidas, então o indivíduo pode recorrer a patrimônios de experiências e modos de agir já familiares e ensaiados" (p. 19)

"Mas como nem todas as repetições de acoes se transformam em instituições, também o sentido constituído subjetivamente e objetivado intersubjetivamente não é assumido sempre nos acervos sociais do conhecimento. Outros processos são interpostos em que o sentido objetivado continua sendo socialmente 'elaborado'. Esses processos são determinados em grande parte pelas relações sociais dominantes. As instituições atuais da dominação e da organização do trabalho, mas sobretudo as instituições que socializam o trato com forcas incomuns dirigem seu interesse sempre para os diferentes estratos e campos da produção de sentido. Procuram influenciar esta produção, isto é, intervir nela, mas com êxito variável. As diferenças no exercício do controle foram e são enormes, inclusive numa mesma época" (p. 19)

Instituições controlam as formas de processar socialmente a solução subjetiva de problemas de experiência e ação e objetivações "primárias" do sentido que se tornaram intersubjetivamente recordáveis por meio da comunicação com os outros. Nesses processos controlados por instituições, ou "secundários", uma coisa ou outra é considerada insignificante ou descartada como inadequada ou perigosa.

"Os sistemas hierárquicos de VALOR e de SABER ordenados assim criados podem estar intimamente ligados entre si como no mundo pré-moderno, ou podem desenvolver-se independentemente uns dos outros. E, finalmente, os elementos e sistemas significativos aceitos são cortados em medida exata para transmissão às gerações futuras. Somente nas sociedades bem simples não houve especialistas para estas tarefas. Nas outras sociedades, as funções como censura, canonização, sistematização e pedagogização foram assumidas por peritos especialmente escolados para isso" (p. 20)

O resultado disso tudo é um reservatório social do sentido, historicamente estruturado. Ele contém o conhecimento geral, proporcionado a todos os membros de uma sociedade, e o conhecimento específico, de acesso limitado.

O cerne de entendimento comum auxilia o indivíduo a se virar no meio ambiente natural e social de sua época. Essa parte contém áreas de sentido que "cartografam" as regiões da realidade diária, que precisa ser levada a cabo, e uma área de sentido que busca esgotar uma realidade extraordinária.

São "importações" teóricas de sistemas de conhecimento especializado - nas sociedades modernas, difundidas pelos meios de comunicação de massa, dos quais as pessoas se apropriam dessas informações e as integram em seu tesouro de experiências - que podem ordenar melhor algumas pares não sistematizadas no todo, tornando-as mais sistematicamente ordenadas do que aquelas limitadas a rotinas práticas da vida cotidiana. O cotidiano das sociedades modernas é marcado por essas "importações" (p. 21).

"Os meios de comunicação de massa difundem conhecimentos especializados de forma popular e as pessoas se apropriam de algumas dessas informações e as integram em seu tesouro de experiências" (p. 21).

As áreas de sentido são estratificadas em si: as tipificações "inferiores" estão relacionadas a fatos da natureza e do mundo social. Essas tipificações fundamentam o desenvolvimento de esquemas de ação, orientados por máximas comportamentais para valores maiores. Essas "configurações de valores" superiores, desde as antigas culturas mais avançadas, foram transformadas em sistemas de valores religiosos e filosóficos. Sistemas que pretendem explicar e regular significativamente a conduta do indivíduo "tanto na relação com a sociedade e nas rotinas do dia-a-dia quanto na superação de suas crises em vista das realidades que transcendem o cotidiano" (p. 21).

"Todas as instituições corporificam um sentido 'primitivo' de ação que se 'confirmou' na regulamentação definitiva do agir social numa área funcional determinada" (p. 22).

Dentre as instituições que tem por tarefa o reprocessamento social do sentido, as mais importantes são as que tem como função principal o controle da produção e transmissão do sentido. Essas instituições existiram em quase todas as sociedades, exceto pelas arcaicas. A exemplo das instituições religioso-morais que estiveram intimamente ligadas com o aparato do poder (como acontece no Irã de hoje). Elas aspiravam, com certo êxito, a produção e a distribuição de uma hierarquia relativamente coerente de sentido na sociedade global.

Porém, se começa a haver uma maior quantidade de fornecedores de sentido concorrendo entre si, o público se vê confrontado com a dificuldade de escolher entre uma infinidade de ofertas a mais adequada.

"As instituições devem conservar e disponibilizar o sentido tanto para o agir do indivíduo em diversas áreas de ação quanto para toda sua conduta. Esta função das instituições está numa relação essencial com o papel do indivíduo como consumidor de sentido, mas também, de caso para caso, produtor de sentido. Esta relação pode ser relativamente simples em sociedades arcaicas e na maioria das culturas tradicionais mais avançadas. Nestas o sentido da ação de áreas individuais é introduzido sem grandes rupturas no sentido geral da conduta de vida, e esta é referida a um sistema de valores de certa forma coerente. Ao controle da produção de sentido se associa a comunicação de sentido. Por meio da educação ou da doutrinação orientada visa-se a que o indivíduo só pense e faça o que corresponde às normas da sociedade. E por meio do controle e censura de tudo o que é publicamente dito, ensinado e pregado deve-se impedir a difusão de opiniões divergentes. Procura-se evitar ou eliminar a competição interna e externa (naturalmente isto nem sempre tem êxito). O sentido do agir e da vida é imposto como regra óbvia de conduta de ida, que a todos obriga. Assim, por exemplo, se define inquestionavelmente o relacionamento entre os casados e dos pais para com os filhos. Os pais e os filhos geralmente se conformam; desvios são claramente definidos como desvios da norma." (p. 23)

 "Nas sociedades modernas as condições são diferentes. Naturalmente há ainda instituições que comunicam o sentido das acoes para suas áreas operacionais; existem ainda sistemas de valores que são administrados por algumas instituições também como categorias de sentido da conduta de vida. Mas, como ainda veremos, há diferenças, em comparação com as sociedades pré-modernas, no grau de coerência dos sistemas de valores, bem como na competitividade interna e externa na produção, comunicação e imposição de sentido" (p. 23-24)