Culturas híbridas, poderes oblíquos (Canclini, p. 283-350)

http://www.edufrn.ufrn.br/bitstream/123456789/764/1/CULTURAS%20H%C3%8DBRIDAS%2C%20PODERES%20OBL%C3%8DQUOS.%20CANCLINI%2C%20Nestor%20Garcia.%201998..pdf



No capítulo "Culturas híbridas, poderes oblíquos", Canclini argumenta sobre a necessidade de uma nova abordagem para o estudo das culturas populares urbanas, pois elas compõem um cenário em que "desmoronam todas as categorias e os pares de oposição convencionais (subalterno/hegemônico, tradicional/moderno) usados para falar do popular". Suas manifestações brotam em cruzamentos, em margens, são novas modalidades de organização da cultura que não cabem no culto ou no popular.

"A fim de avançar na análise da hibridação intercultural, ampliarei o debate sobre os modos de nomeá-la e os estilos com que é representada. Em primeiro lugar, discutirei uma noção que aparece nas ciências sociais como substituto do que já não pode ser entendido sob os rótulos de culto ou popular: usa-se a fórmula cultura urbana para tratar de conter as forças dispersas da modernidade. Depois, pretendo ocupar-me de três processos fundamentais para explicar a hibridação, a quebra e a mescla das coleções organizadas pelos sistemas culturais, a desterritorialização dos processos simbólicos e a expansão dos gêneros impuros. Através dessas análises, procuraremos precisar as articulações entre modernidade e pós-modernidade, entre cultura e poder."

As últimas tecnologias não são as únicas responsáveis pelas mudanças na produção e circulação simbólica. De certa forma, a cidade, mais especificamente o crescimento urbano, é algo que intensifica a hibridação cultural. Em relação à América Latina, hoje somos "uma trama majoritariamente urbana, em que se dispõe de uma oferta simbólica heterogênea, renovada por uma constante interação do local com redes nacionais e transnacionais de comunicação". Mas Canclini não vê o meio urbano numa relação de oposição ao meio rural, e observa: "A urbanização predominante nas sociedades contemporâneas se entrelaça com a serialização e o anonimato na produção, com reestruturações da comunicação imaterial (dos meios massivos à telemática) que modificam os vínculos entre o privado e o público. Como explicar que muitas mudanças de pensamento e gostos da vida urbana coincidam com os do meio rural, se não por que as interações comerciais deste com as cidades e a recepção da mídia eletrônica nas casas rurais os conecta diretamente com as inovações modernas?". 

Dissolver-se na massa e no anonimato também não são mais sinônimos de viver em uma grande capital. "A violência e a insegurança pública, a impossibilidade de abranger a cidade (quem conhece todos os bairros de uma capital?) levam a procurar na intimidade doméstica em encontros confiáveis, formas seletivas de sociabilidade. Os grupos populares saem pouco de seus espaços, periféricos ou centrais; os setores médios e altos multiplicam as grades nas janelas, fecham e privatizam ruas do bairro. Para todos o rádio e a televisão, para alguns o computador conectado para serviços básicos, transmitem-lhes a informação e o entretenimento a domicílio."

A ideia de habitar as cidades e, ao mesmo tempo, isolar-se, bate de frente com o pensamento moderno de Habermas, pois "a esfera pública já não é o lugar de participação racional a partir da qual se determina a ordem social". É cada vez maior a burocratização e a "midiatização" da política. "A emergência de múltiplas exigências, ampliada em parte pelo crescimento de reivindicações culturais e relativas à qualidade de vida, suscita um espectro diversificado de órgãos porta vozes: movimentos urbanos, étnicos, juvenis, feministas, de consumidores, ecológicos etc. A mobilização social, do mesmo modo que a estrutura da cidade, fragmenta-se em processos cada vez mais difíceis de totalizar".

O espaço público deve ser reorganizado para que esses movimentos sejam eficazes, pois "suas ações são de baixa ressonância quando se limitam a usar formas tradicionais de comunicação (orais, de produção artesanal ou em textos escritos que circulam de mão em mão). Seu poder cresce se atuam nas redes massivas: não apenas a presença urbana de uma manifestação de cem ou duzentas mil pessoas, porém - mais ainda - sua capacidade de interferir no funcionamento habitual de uma cidade e encontrar eco, por isso mesmo, nos meios eletrônicos de informação. Então, às vezes, o sentido do urbano se restitui, e o massivo deixa de ser um sistema vertical de difusão para transformar se em expressão amplificada de poderes locais, complementação dos fragmentos."

"Em uma época em que a cidade, a esfera pública, é ocupada por agentes que calculam tecnicamente suas decisões e organizam tecnoburocraticamente o atendimento às demandas, segundo critérios de rentabilidade e eficiência, a subjetividade polêmica, ou simplesmente a subjetividade, recolhe-se ao âmbito privado. O mercado reorganiza o mundo público como palco do consumo e dramatização dos signos de status."

"Uma organização diferente do "tempo livre", que o transforma em prolongamento do trabalho e do lucro, contribui para essa reformulação do público. Dos cafés da manhã de trabalho ao trabalho, aos almoços de negócios, ao trabalho, para ver o que nos oferece a televisão em casa, e alguns dias aos jantares de sociabilidade rentável. O tempo livre dos setores populares, coagidos pelo subemprego e pela deterioração (sic.) salarial, é ainda menos livre por ter que preocupar se com o segundo, o terceiro trabalho, ou em procurá-los. As identidades coletivas encontram cada vez menos na cidade e em sua história, distante ou recente, seu palco constitutivo. As informações sobre as peripécias sociais são recebidas em casa, comentadas em família ou com amigos próximos. Quase toda a sociabilidade e a reflexão sobre ela concentra-se em intercâmbios íntimos. Como a informação sobre os aumentos de preços, o que fez o governante e até sobre os acidentes do dia anterior em nossa própria cidade nos chegam pela mídia, esta se torna a constituinte dominante do sentido "público" da cidade, a que simula integrar um imaginário urbano desagregado."

Os meios massivos, por vezes, superam a fragmentação, pois "o rádio e a televisão, ao relacionar patrimônios históricos, étnicos e regionais diversos, e difundi-los maciçamente, coordena as múltiplas temporalidades de espectadores diferentes". Assim como a televisão possui efeitos integradores e dissolventes, outros fatores recentes, decorrentes das mudanças ligadas ao desenvolvimento urbano e à crise econômica, que geram processos de unificação e atomização.

"Os grupos que se reúnem de quando em quando para analisar questões coletivas - os pais na escola, os trabalhadores em seu, centro de trabalho, as associações suburbanas - costumam atuar e pensar como grupos auto-referidos, freqüentemente sectarizados por que a pressão econômica sobre o imediato os faz perder de vista o horizonte do social. Isso foi estudado principalmente por sociólogos do Cone Sul, onde as ditaduras militares suspenderam os partidos, os sindicatos e outros mecanismos de agrupamento, mobilização e cooperação coletiva. A repressão tentou remodelar o espaço público reduzindo a participação social à inserção de cada indivíduo nos benefícios do consumo e à especulação financeira. A mídia se transformou, até certo ponto, na grande mediadora e mediatizadora e, portanto, em substituta de outras interações coletivas.". 

Dentro de uma política neoconservadora, também presente em outros governos latinoamericanos, "o cidadão se torna cliente, 'público consumidor'.". No lugar do espaço público, as tecnologias eletrônicas protagonizam a "cultura urbana". É a mediatização social; ou, de acordo com Eliseo Verón, pelo fato de o real ser produzido pelas imagens geradas na mídia, vivemos em uma "democracia audiovisual". Mas, para Canclini, o que existe é uma circularidade do comunicacional, um jogo de ecos entre a vida urbana e os meios audiovisuais. 

Não se pode dizer que as tecnologias comunicativas substituem a herança do passado e interações públicas, o que seria uma perspectiva histórica linear. Para retomar a questão dos usos modernos e pós-modernos da história, Canclini analisa a relação dos monumentos com determinadas transformações em curso na cidade, tais como a publicidade, os grafites e as manifestações políticas. 

"Houve uma época em que os monumentos eram, ao lado das escolas e dos museus, um cenário legitimador do culto tradicional. (...) a estética monumentalista que rege a maioria dos espaços históricos na América Latina teve início como expressão de sistemas sociais autoritários no mundo pré-colombiano. A eles se superpôs o expansionismo colonial espanhol e português, sua necessidade de competir com a grandiloqüência da arquitetura indígena mediante o gigantismo neoclássico e a exuberância barroca."

"Que pretendem dizer os monumentos dentro da simbologia urbana contemporânea? Em processos revolucionários com ampla participação popular, os ritos multitudinários e as construções monumentais expressam o impulso histórico de movimentos de massa. São parte da disputa por uma nova cultura visual em meio à obstinada persistência de signos da velha ordem (....). Mas quando o novo movimento se torna sistema, os projetos de transformação seguem mais a rota do planejamento burocrático que a da mobilização participativa. Quando a organização social se estabiliza, a ritualidade se esclerosa".

Há tensões "entre a memória história e a trama visual das cidades modernas", hibridações. Os monumentos, que levam "estilos e referências a diversos períodos históricos e artísticos", interagem "com o crescimento urbano, a publicidade, os grafites e os movimentos sociais modernos."

"O desenvolvimento moderno tentou distribuir os objetos e os signos em lugares específicos: as mercadorias de uso atual nas lojas, os objetos do passado em museus de história, os que pretendem valer por seu sentido estético em museus de arte. Ao mesmo tempo, as mensagens emitidas pelas mercadorias, pelas obras históricas e artísticas, e que indicam como usá-las, circulam pelas escolas e pelos meios massivos de comunicação. Uma classificação rigorosa das coisas, e das linguagens que falam delas, sustém a organização sistemática dos espaços sociais em que devem ser consumidos. Essa ordem estrutura a vida dos consumidores e prescreve comportamentos e modos de percepção adequados a cada situação. Ser culto em uma cidade moderna consiste em saber distinguir entre o que se compra para usar, o que se rememora e o que se goza simbolicamente. Requer viver o sistema social de forma compartimentada. "

No entanto, essa ordem é transgredida pela vida urbana, onde "os interesses mercantis cruzam-se com os históricos, estéticos e comunicacionais. As lutas semânticas para neutralizar, perturbar a mensagem dos outros ou mudar seu significado, e subordinar os demais à própria lógica, são encenações dos conflitos entre as forças sociais: entre o mercado, a história, o Estado, a publicidade e a luta popular para sobreviver". " Grafites, cartazes comerciais, manifestações sociais e políticas, monumentos: linguagens que representam as principais forças que atuam na cidade. Os monumentos são quase sempre as obras com que o poder político consagra as pessoas e os acontecimentos fundadores do Estado". "Não é uma evidência da distância entre um Estado e um povo, ou entre a história e o presente, a necessidade de reescrever politicamente os monumentos?".

DESCOLECIONAR 

"Essa dificuldade para abranger o que antes totalizávamos sob a fórmula "cultura urbana", ou com as noções de culto, popular e massivo, levanta um problema: a organização da cultura pode ser explicada por referência a coleções de bens simbólicos? Também a desarticulação do urbano põe em dúvida que os sistemas culturais encontrem sua chave nas relações da população com certo tipo de território e de história que prefigurariam em um sentido peculiar os comportamentos de cada grupo. "

"A formação de coleções especializadas de arte culta e folclore foi na Europa moderna, e mais tarde na América Latina, um dispositivo para organizar os bens simbólicos em grupos separados e hierarquizados.  Conhecer sua organização já era uma forma de possui-los, que distinguia daqueles que não sabiam relacionar se com ela. (...)  A história da arte e da literatura formou-se com base nas coleções que os museus e as bibliotecas alojavam quando eram edifícios para guardar, exibir e consultar coleções. " Porém, hoje os intelectuais e estudantes acabam mais por se relacionar com suas bibliotecas privadas, no lugar das públicas, e nas suas coleções particulares "os livros se misturam com revistas, recortes de jornais, informações fragmentárias que passará a todo momento de uma estante a outra, que o uso obriga a dispersar em várias mesas e no chão".

 "A agonia das coleções é o sintoma mais claro de como se desvanecem as classificações que distinguiam o culto do popular e ambos do massivo. As culturas já não se agrupam em grupos fixos e estáveis e portanto desaparece a possibilidade de ser culto conhecendo o repertório das "grandes obras", ou ser popular porque se domina o sentido dos objetos e mensagens produzidos por uma comunidade mais ou menos fechada (uma etnia, um bairro, uma classe). Agora essas coleções renovam sua composição e sua hierarquia com as modas, entrecruzam-se o tempo todo, e, ainda por cima, cada usuário pode fazer sua própria coleção. As tecnologias de reprodução permitem a cada um montar em sua casa um repertório de discos e fitas que combinam o culto com o popular, incluindo aqueles que já fazem isso na estrutura das obras: Piazzola, que mistura o tango com o jazz e a música clássica; Caetano Veloso e Chico Buarque, que se apropriam ao mesmo tempo da experimentação dos poetas concretos, das tradições afro-brasileiras e da experimentação musical pós-weberiana."

"Proliferam, além disso, os dispositivos de reprodução que não podemos definir como cultos ou populares. Neles se perdem as coleções, desestruturam-se as imagens e os contextos, as referências semânticas e históricas que amarravam seus sentidos."

"Fotocopiadoras. Os livros são desencadernados, as antologias aproximam autores incapazes de ser abordados nos simpósios, novas encadernações agrupam capítulos de diversos volumes seguindo, não a lógica da produção intelectual, mas a dos usos: preparar um exame, seguir os gostos de um professor, seguir itinerários sinuosos ausentes nas classificações rotineiras das livrarias e das bibliotecas. Essa relação fragmentária com os livros leva a perder a estrutura em que se inserem os capítulos: baixamos, escreveu alguma vez Monsiváis, ao "grau xerox da leitura". Também é verdade, que o manejo mais livre dos textos, sua redução a anotações tão dessacralizadas como a aula gravada - que às vezes nem passa pela folha escrita, porque é transcrita na tela do computador - induza vínculos mais fluidos entre os textos, entre os estudantes e o Saber." Outros exemplos dados por Canclini são: o Videocassete, Videoclips ("o gênero mais intrinsecamente pós-moderno"), Video games ("a sensualidade e a eficácia da tecnologia; dão uma tela-espelho").

"Como se estabeleceu há tempos nos estudos sobre efeitos da televisão, esses novos recursos tecnológicos não são neutros, nem tampouco onipotentes. Sua simples inovação formal implica mudanças culturais, mas o significado final depende dos usos que lhes atribuem diversos agentes. Nós os citamos neste lugar porque fendem as ordens que classificavam e distinguiam as tradições culturais, enfraquecem o sentido histórico e as concepções macroestruturais em benefício de relações intensas e esporádicas com objetos isolados, com seus signos e imagens. Alguns teóricos pós-modernos sustentam que esse predomínio das relações pontuais e desistorizadas é coerente com a derrocada dos grandes relatos metafísicos."    

" Efetivamente, não há razões para lamentar a decomposição das coleções rígidas que, ao separar o culto, o popular e o massivo, promoviam as desigualdades.  Também não acreditamos que haja perspectivas de restaurar essa ordem clássica da modernidade. Vemos nos cruzamentos irreverentes ocasiões de relativizar os fundamentalismos religiosos, políticos, nacionais, étnicos, artísticos, que absolutizam certos patrimônios e discriminam os demais. Mas nos perguntamos se a descontinuidade extrema como hábito perceptivo, a diminuição de oportunidades para compreender a reelaboração dos significados subsistentes de algumas tradições para intervir em sua transformação, não reforça o poder inconsulto dos que realmente continuam preocupados em entender e dirigir as grandes redes de objetos e sentidos: as transnacionais e os Estados."

"É necessário incluir nas estratégias descolecionadoras e desierarquizadoras das tecnologias culturais a assimetria existente, em sua produção e seu uso, entre os países centrais e os dependentes, entre consumidores de diferentes classes dentro de uma mesma sociedade. As possibilidades de aproveitar as inovações tecnológicas e adequá-las às próprias necessidades produtivas e comunicacionais são desiguais nos países centrais geradores de invenções, com altos investimentos para renovar suas indústrias, bens e serviços - e na América Latina, onde os investimentos estão congelados pelo peso da dívida e das políticas de austeridade, onde os cientistas e técnicos trabalham com orçamentos ridículos ou têm que emigrar, o controle dos meios culturais mais modernos está altamente concentrado e depende muito de programação exógena."

"Não se trata, é claro, de retornar às denúncias paranóicas, às concepções conspirativas da história, que acusavam a modernização da cultura massiva e cotidiana de ser um instrumento dos poderosos para explorar mais. A questão é entender como a dinâmica própria do desenvolvimento tecnológico remodela a sociedade, coincide com movimentos sociais ou os contradiz. tecnologias de diferentes signos, cada uma com várias possibilidades de desenvolvimento e articulação com as outras. Há setores sociais com capitais culturais e disposições diversas de apropriar se delas, com sentidos diferentes: a descoleção e a hibridação não são iguais para os adolescentes populares que vão às casas públicas de video games e para os de classe média e alta que os têm em suas casas. Os sentidos das tecnologias se constroem conforme os modos pelos quais se institucionalizam e se socializam."    

"A remodelação tecnológica das práticas sociais nem sempre contradiz as culturas tradicionais e as artes modernas. Expandiu, por exemplo, o uso de bens patrimoniais e o campo da criatividade. Assim como os video games trivializam batalhas históricas e alguns videoclips as tendências experimentais da arte, os computadores e outros usos do vídeo facilitam obter dados, visualizar gráficos e inová-los, simular o uso de peças e informações, reduzir a distância entre concepção e execução, conhecimento e aplicação, informação e decisão. Essa apropriação múltipla de patrimônios culturais abre possibilidades originais de experimentação e comunicação, com usos democratizadores, como se observa na utilização do vídeo feito por alguns movimentos populares."

Canclini explica que as novas tecnologias também reproduzem estruturas conhecidas, ou seja, coexistem usos contraditórios, reveladores de "que as interações das tecnologias com a cultura anterior as torna parte de um processo muito maior do que aquele que elas desencadearam ou manejam". "Uma dessas transformações de longa data, que a intervenção tecnológica torna mais patente, é a reorganização dos vínculos entre grupos e sistemas simbólicos; os descolecionamentos e as hibridações já não permitem vincular rigidamente as classes sociais com os estratos culturais. Ainda que muitas obras permaneçam dentro dos circuitos minoritários ou populares para que foram feitas, a tendência predominante é que todos os setores misturem em seus gostos objetos de procedências antes separadas. Não quero dizer que essa circulação mais fluida e complexa tenha dissolvido as diferenças entre as classes. Apenas afirmo que a reorganização dos cenários culturais e os cruzamentos constantes das identidades exigem investigar de outro modo as ordens que sistematizam as relações materiais e simbólicas entre os grupos."

DESTERRITORIALIZAR

"As buscas mais radicais sobre o que significa estar entrando e saindo da modernidade são as dos que assumem ás tensões entre desterritorialização e reterritorialização. Com isso refiro-me a dois processos: a perda da relação "natural" da cultura com os territórios geográficos e sociais e, ao mesmo tempo, certas relocalizações territoriais relativas, parciais, das velhas e novas produções simbólicas."

A modernização das culturas latino-americanas foi "realizada primeiro sob a forma de dominação colonial, logo depois como industrialização e urbanização sob modelos metropolitanos, a modernidade pareceu organizar-se em antagonismos econômico-políticos e culturais: colonizadores vs. colonizados, cosmopolitismo vs. nacionalismo. O último par de opostos foi o utilizado pela teoria da dependência, segundo a qual tudo se explicava pelo confronto entre o imperialismo e as culturas nacional-populares."

"Os estudos sobre o imperialismo econômico e cultural serviram para conhecer alguns dispositivos usados pelos centros internacionais de produção científica, artística e comunicacional que condicionavam, e ainda condicionam, nosso desenvolvimento. Mas esse modelo é insuficiente para entender as atuais relações de poder. Não explica o funcionamento planetário de um sistema industrial, tecnológico, financeiro e cultural, cuja sede não está em uma só nação mas em uma densa rede de estruturas econômicas e ideológicas. Também não dá conta da necessidade das nações metropolitanas de flexibilizar suas fronteiras e integrar suas economias, sistemas educativos, tecnológicos e culturais, como está acontecendo na Europa e na América do Norte."

Também é destacada a disseminação dos produtos simbólicos pela eletrônica e pela telemática. "No Brasil, o avanço da massificação e industrialização da cultura não implicou contrariamente ao que se costumava dizer, uma maior dependência da produção estrangeira. (...) Ao mesmo tempo em que ocorre essa tendência à nacionalização e autonomia da produção cultural, o Brasil se transforma em um agente muito ativo do mercado latino-americano de bens simbólicos exportando telenovelas."

"As migrações multidirecionais são o outro fator que relativiza o paradigma binário e polar na análise das relações interculturais. A internacionalização latino-americana se acentua nas últimas décadas, em que as migrações não abrangem apenas escritores, artistas e políticos exilados, como ocorreu desde o século passado, mas populações de todos os estratos."

"Dos dois lados dessa fronteira, os movimentos interculturais mostram sua face dolorosa: o subemprego e o desarraigamento de camponeses e indígenas que tiveram que sair de suas terras para sobreviver Mas também está crescendo ali uma produção cultural muito dinâmica."

"Para que não restem dúvidas da extensão transclassista do fenômeno de desterritorialização, é útil referir se às investigações antropológicas sobre migrantes.". 

" "Mediante a constante migração de ida e volta, e o uso crescente de telefones, aguilillenses costumam estar reproduzindo seus laços com gente que está a duas mil milhas de distância tão ativamente quanto mantêm suas relações com os vizinhos imediatos. Mais ainda, e mais geralmente, por meio da circulação contínua de pessoas, dinheiro, mercadorias e informação, os diversos assentamentos se entrelaçaram com tal força que provavelmente sejam mais bem compreendidos como se formassem uma única comunidade dispersa em uma variedade de lugares.""

"Duas noções convencionais da teoria social caem ante essas "economias cruzadas, sistemas de significados que se interseccionam e personalidades fragmentadas". Uma é a da "comunidade", empregada tanto para populações rurais isoladas quanto para expressar a coesão abstrata de um Estado nacional compacto, em ambos os casos definíveis por sua relação com um território específico. Supunha-se que os vínculos entre os membros dessas comunidades seriam mais intensos dentro que fora de seu espaço e que os membros tratassem a comunidade como o meio principal ao qual ajustam suas ações. A segunda imagem é a que opõe centro e periferia, também "expressão abstrata de um sistema imperial idealizado", no qual as gradações de poder e riqueza estariam distribuídas concentricamente: o maior no centro e uma diminuição crescente à medida que caminhamos em direção a zonas circundantes. O mundo funciona cada vez menos desse modo, diz Rouse; precisamos de "uma cartografia alternativa do espaço social", baseada mais nas noções de "circuito" e "fronteira"."    

"Há uma "implosão do terceiro mundo no primeiro", segundo Renato Rosaldo; "a noção de uma cultura autêntica como um universo autônomo internamente coerente não é mais sustentável" em nenhum dos dois mundos, "exceto talvez como uma "ficção útil" ou uma distorção reveladora""

"Desterritorialização e reterritorialização. Nos intercâmbios da simbologia tradicional com os circuitos internacionais de comunicação, com as indústrias culturais e as migrações, não desaparecem as perguntas pela identidade e pelo nacional, pela defesa da soberania, pela desigual apropriação do saber e da arte. Não se apagam os conflitos, como pretende o pós-modernismo neoconservador. Colocam-se em outro registro, multifocal e mais tolerante, repensa-se a autonomia de cada cultura - às vezes com menores riscos fundamentalistas. Não obstante, as críticas chauvinistas aos "do centro" geram às vezes conflitos violentos: agressões aos migrantes recémchegados, discriminação nas escolas e nos trabalhos."

INTERSECÇÕES: DO MODERNO AO PÓS-MODERNO

" A hibridez tem um longo trajeto nas culturas latino-americanas. Recordamos antes as formas sincréticas criadas pelas matrizes espanholas e portuguesas com a figuração indígena. Nos projetos de independência e desenvolvimento nacional, vimos a luta para compatibilizar o modernismo cultural com a semimodernização econômica, e ambos com as tradições persistentes. 

A descoleção e a desterritorialização têm antecedentes nas reflexões utópicas e nas práticas de artistas e intelectuais. Dois exemplos: os manifestos estéticos dos "antropófagos" brasileiros e do grupo Martín Fierro nos anos 20. O Manifesto Antropofágico, publicado em 1928-1929, diz: 

"Só me interessa o que não é meu. [...] Foi porque nunca tivemos gramática, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental [...] [que] nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo.""

" Em que reside, então, a novidade da descoleção, da desterritorialização e da hibridez pósmodernas? As práticas artísticas carecem agora de paradigmas consistentes. Os artistas e escritores modernos inovavam, alteravam os modelos ou os substituíam por outros, mas tendo sempre referentes de legitimidade. As transgressões dos pintores modernos foram feitas falando da arte de outros. Uma linha pensou que a pintura estava nas metrópoles: por isso, as imagens de Jacobo Borges, de José Gamarra, de Gironella, refazem com ironia ou irreverência o que de Velázquez ao Rousseau, o Aduaneiro, havia sido concebido como legítimo na visualidade européia. Outras correntes abriram o olhar culto ao imaginário popular, convencidas de que a arte latino-americana se justificaria recolhendo a iconografia dos oprimidos: Viteri enche suas obras de bonecas de pano; Berni trançava arames com caixas de ovos, tampas de garrafas e sucata de carros, perucas e fragmentos de cortinas para falar parodicamente da modernidade, do Mundo Ofrecido a Juanito Laguna. Arte de citações européias ou arte de citações populares: sempre arte mestiça, impura, que existe à força de colocar se no cruzamento dos caminhos que foram nos compondo e descompondo. Mas acreditavam que havia caminhos, paradigmas de modernidade respeitáveis o bastante para merecer que fossem discutidos."

"A visualidade pós-moderna, ao invés disso, é a encenação de uma dupla perda: do roteiro e do autor. A desaparição do roteiro quer dizer que já não existem os grandes relatos que organizavam e hierarquizavam os períodos do patrimônio, a vegetação de obras cultas e populares nas quais a sociedade e as classes se reconheciam e consagravam suas virtudes. Por isso na pintura recente um mesmo quadro pode ser ao mesmo tempo hiper realista, impressionista e pop; um retábulo ou uma máscara combinam ícones tradicionais com o que vemos na televisão. O pós-modernismo não é um estilo mas a co-presença tumultuada de todos, o lugar onde os capítulos da história da arte e do folclore cruzam entre si e com as novas tecnologias culturais."  

" A outra tentativa moderna de reinaugurar a história foi a subjetividade do autor. Hoje achamos que a exaltação narcisista do pintor ou do cineasta que querem fazer de sua gestualidade o ato fundador do mundo é a paródia pseudolaica de Deus. Não acreditamos no artista que quer erigir-se em gramático ilustre, disposto a legislar a nova sintaxe."

" O mercado artístico, a reorganização da visualidade urbana gerada pelas indústrias culturais e a fadiga do voluntarismo político combinam-se para tornar inverossímil toda tentativa de fazer da arte culta ou do folclore a proclamação do poder inaugural do artista ou de agentes sociais proeminentes."

"Os mercados de arte e artesanato, ainda que mantenham diferenças, coincidem em certo tratamento das obras. Tanto o artista que, ao pendurar os quadros, propõe uma ordem de leitura  quanto o artesão, que articula suas peças seguindo uma matriz mítica, descobrem que o mercado os dispersa e ressemantiza ao vendê-los em países diferentes, a consumidores heterogêneos. Ao artista restam às vezes as cópias, ou slides, e algum dia um museu talvez reuna esses quadros, de acordo com a reavaliação que experimentaram, em uma mostra na qual uma ordem nova apagará a enunciação "original" do pintor. Ao artesão resta a possibilidade de repetir peças semelhantes, ou ir vê-las - seriadas em uma ordem e em um discurso que não são os seus - num museu de arte popular ou em livros para turistas."

"Algo equivalente acontece no mercado político. Os bens ideológicos que são intercambiados, as posições a partir das quais são apropriados e defendidos, são cada vez mais parecidos em todos os países. Os antigos perfis nacionalistas, ou ao menos nacionais, das forças políticas foram se diluindo em alinhamentos gerados por desafios comuns (dívida externa, recessão, reestruturação industrial) e pelas "saídas" propostas pelas grandes correntes internacionais: neoconservadorismo, socialdemocracia, social-comunismo."

" Encontro muitos artistas latino-americanos, críticos da modernidade, que recusam, por motivos estéticos ou socioculturais ou políticos, esse maneirismo da inauguração inacabável. Ainda que já não vinculem seu trabalho à luta por uma nova ordem total impraticável, querem repensar nas obras fragmentos do patrimônio de seu grupo."

" Não vejo nesses pintores, escultores e artistas gráficos a vontade teológica de inventar ou impor um sentido ao mundo. Mas também não há neles o niilismo abissal de Andy Warhol, Rauschenberg e tantos praticantes do bad painting e da transvanguarda. Sua crítica ao gênio artístico, e em alguns ao subjetivismo elitista, não os impede de perceber que estão surgindo outras formas de subjetividade a cargo de novos agentes sociais (ou não tão novos), que já não são exclusivamente brancos, ocidentais e homens."

"Despojados de qualquer ilusão totalizadora ou messiânica, esses artistas mantêm uma tensa relação questionadora com sociedades, ou fragmentos delas, onde crêem ver movimentos socioculturais vivos e utopias praticáveis. Sei como é limitado o uso dessas palavras entre os precipícios deixados pela derrocada de tantas tradições e modernidades. Mas certos trabalhos de artistas e de produtores populares nos permitem pensar que o tema das utopias e dos projetos históricos não está fechado. Alguns entendem que a queda dos relatos totalizadores não elimina a busca crítica do sentido - melhor, dos sentidos - na articulação das tradições e da modernidade. Com a condição de reconhecer a instabilidade do social e a pluralidade semântica, talvez seja possível continuar se perguntando como a arte culta e a popular constroem sentido em suas mesclas inevitáveis e sua interação com a simbologia massiva."

GÊNEROS IMPUROS: GRAFITES E QUADRINHOS 

"Falamos de artistas e escritores que abrem o território da pintura ou do texto para que sua linguagem migre e se cruze com outras. Mas há gêneros constitucionalmente híbridos, por exemplo, o grafite e os quadrinhos. São práticas que desde seu nascimento abandonaram o conceito de coleção patrimonial. Lugares de intersecção entre o visual e o literário, o culto e o popular, aproximam o artesanal da produção industrial e da circulação massiva.

Sobre o grafite: " Suas referências sexuais, políticas ou estéticas são maneiras de enunciar o modo de vida e de pensamento de um grupo que não dispõe de circuitos comerciais, políticos ou dos mass media para expressar se, mas que através do grafite afirma seu estilo. Seu traço manual, espontâneo, opõe-se estruturalmente às legendas políticas ou publicitárias "bem" pintadas ou impressas e desafia essas linguagens institucionalizadas quando as altera. O grafite afirma o território, mas desestrutura as coleções de bens materiais e simbólicos."

" O grafite é um meio sincrético e transcultural. (...) É um modo marginal desinstitucionalizado, efêmero, de assumir as novas reações entre o privado e o público, entre a vida cotidiana e a política."

" As histórias em quadrinhos se tornaram a tal ponto um componente central da cultura contemporânea, com uma bibliografia tão extensa, que seria trivial insistir no que todos sabemos de sua aliança inovadora, desde o final do século XIX, entre a cultura icônica e a literária. Participam da arte e do jornalismo, são a literatura mais lida, o ramo da indústria editorial que produz maiores lucros."

"Poderíamos lembrar que as histórias em quadrinhos, ao gerar novas ordens e técnicas narrativas, mediante a combinação original de tempo e imagens em um relato de quadros descontínuos, contribuíram para mostrar a potencialidade visual da escrita e o dramatismo que pode ser condensado em imagens estáticas."

PODERES OBLÍQUOS 

"Essa travessia por algumas transformações pós-modernas do mercado simbólico e da cultura cotidiana contribui para entender por que fracassam certas maneiras de fazer Política baseadas em dois princípios da modernidade da autonomia dos processos simbólicos, e a renovação democrática do culto e do popular. Pode ajudar-nos a explicar, da mesma forma, o êxito generalizado das políticas neoconservadoras e a falta de alternativas socializantes ou mais democráticas adequadas ao grau de desenvolvimento tecnológico e à complexidade da crise social. Além das vantagens econômicas dos grupos neoconservadores, sua ação é facilitada por ter captado melhor o sentido sociocultural das novas estruturas de poder."

"A partir do que viemos analisando, uma questão se torna fundamental: a reorganização cultural do poder. Trata-se de analisar quais são as conseqüências políticas ao passar de uma concepção vertical e bipolar para outra descentralizada, multideterminada, das relações sociopolíticas."

"Aparentemente os grandes grupos concentradores de poder são os que subordinam a arte e a cultura ao mercado, os que disciplinam o trabalho e a vida cotidiana. Uma visão mais ampla permite ver outras transformações econômicas e políticas, apoiadas em transformações culturais de longa duração, que estão dando uma estrutura diferente aos conflitos. Os cruzamentos entre o culto e o popular tornam obsoleta a representação polar entre ambas as modalidades "de desenvolvimento simbólico e relativizam, portanto, a oposição política entre hegemônicos e subalternos, concebida como se tratasse de conjuntos totalmente diferentes e sempre confrontados. O que sabemos hoje sobre as operações interculturais dos meios massivos e as novas tecnologias, sobre a reapropriação que diversos receptores fazem deles, afasta-nos das teses sobre a manipulação onipotente dos grandes conglomerados metropolitanos. Os paradigmas clássicos segundo os quais foi explicada a dominação são incapazes de dar conta da disseminação dos centros, da multipolaridade das iniciativas sociais, da pluralidade de referências - tomadas de diversos territórios - com que os artistas, os artesãos e os meios massivos montam suas obras."

"O incremento de processos de hibridação torna evidente que captamos muito pouco do poder se só registramos os confrontos e as ações verticais. O poder não funcionaria se fosse exercido unicamente por burgueses sobre proletários, por brancos sobre indígenas, por pais sobre filhos, pela mídia sobre os receptores. Porque todas essas relações se entrelaçam umas com as outras, cada uma consegue uma eficácia que sozinha nunca alcançaria. Mas não se trata simplesmente de que, ao se superpor umas formas de dominação sobre as outras, elas se potenciem. O que lhes dá sua eficácia é a obliqüidade que se estabelece na trama. Gomo discernir onde acaba o poder étnico e onde começa o familiar ou as fronteiras entre o poder político e o econômico? Às vezes é possível, mas o que mais conta é a astúcia com que os fios se mesclam, com que se passam ordens secretas e são respondidas afirmativamente."

"Hegemônico, subalterno: palavras pesadas, que nos ajudaram a nomear as divisões entre os homens, mas não a incluir os movimentos do afeto, a participação em atividades solidárias ou cúmplices, em que hegemônicos e subalternos precisam um do outro."

"A dramatização ideológica das relações sociais tende a exaltar tanto as oposições que ela acaba por não ver os ritos que unem e comunicam; é uma sociologia das grades, não do que se diz através delas, ou quando não existem. Os setores populares mais rebeldes, os líderes mais combativos satisfazem suas necessidades básicas participando de um sistema de consumo que eles não escolhem. Não podem inventar o lugar onde trabalham, nem o transporte que os leva, nem a escola em que educam seus filhos, nem a comida, nem a roupa, nem a mídia que lhes proporciona informação cotidiana. Mesmo os protestos contra essa ordem são feitos usando uma língua que não escolhemos, manifestando-se em ruas ou praças que outros projetaram. Por mais usos transgressores que se façam da língua, das ruas e das praças, a ressignificação é temporária, não anula o peso dos hábitos com que reproduzimos a ordem sociocultural, fora e dentro de nós."

"A mesma combinação de práticas científicas e tradicionais - ir ao médico e ao curandeiro - é uma maneira transacional de aproveitar os recursos de ambas as medicinas e com isso os usuários revelam uma concepção mais flexível que a do sistema médico moderno sectarizado na alopatia, e que a de muitos folcloristas e antropólogos que idealizam a autonomia das práticas tradicionais. Da perspectiva dos usuários, ambas as modalidades terapêuticas são complementares, funcionam como repertórios de recursos a partir dos quais efetuam transações entre o saber hegemônico e o popular."

 "As hibridações descritas ao longo deste livro nos levam a concluir que hoje todas as culturas são de fronteira. Todas as artes se desenvolvem em relação com outras artes: o artesanato migra do campo para a cidade; os filmes, os vídeos e canções que narram acontecimentos de um povo são intercambiados com outros. Assim as culturas perdem a relação exclusiva com seu território, mas ganham em comunicação e conhecimento."

" Há ainda outro modo pelo qual a obliqüidade dos circuitos simbólicos permite repensar os vínculos entre cultura e poder. A busca de mediações, de vias diagonais para gerir os conflitos, dá às relações culturais um lugar proeminente no desenvolvimento político. Quando não conseguimos mudar o governante, nós o satirizamos. Nas danças do Carnaval, no humor jornalístico, nos grafites. Ante a impossibilidade de construir uma ordem diferente, erigimos nos mitos, na literatura e nas histórias em quadrinhos desafios mascarados. A luta entre classes ou entre etnias é, na maior parte dos dias, uma luta metafórica. Às vezes, a partir das metáforas, irrompem lenta ou inesperadamente práticas transformadoras inéditas."

" Mas as frustrações dos órgãos de direitos humanos levam a refletir também sobre o papel da cultura como expressão simbólica para sustentar uma demanda quando as vias políticas se fecham."

"Essa eficácia simbólica limitada conduz a essa distinção fundamental para definir as relações entre o campo cultural e o político, que analisamos no capitulo anterior: a diferença entre ação e atuação. Uma dificuldade crônica na avaliação política das práticas culturais é entender estas como ações, ou seja, como intervenções efetivas nas estruturas materiais da sociedade. Certas leituras sociologizantes também medem a utilidade de um mural ou de um filme por sua capacidade performativa de gerar modificações imediatas e verificáveis. Espera-se que os espectadores respondam às supostas ações "conscientizadoras" com "tomadas de consciência" e "mudanças reais" em suas condutas. Como isso não acontece quase nunca, chega-se a conclusões pessimistas sobre a eficácia das mensagens artísticas.

"As práticas culturais são, mais que ações, atuações. Representam, simulam as ações sociais, mas só às vezes operam como uma ação. Isso acontece não apenas nas atividades culturais expressamente organizadas e reconhecidas como tais; também os comportamentos ordinários, agrupados ou não em instituições, empregam a ação simulada, a atuação simbólica. Os discursos presidenciais ante um conflito insolúvel com os recursos que se têm, a crítica à atuação governamental de organizações políticas sem poder para revertê-la e, é claro, as rebeliões verbais do cidadão comum são atuações mais compreensíveis para o olhar teatral que para o do político "puro". A antropologia nos informa que isso não se deve à distância que as crises colocam entre os ideais e os atos, mas à estrutura constitutiva da articulação entre o político e o cultural em qualquer sociedade. Talvez o maior interesse para a política de levar em conta a problemática simbólica não resida na eficácia pontual de certos bens ou mensagens, mas no fato de que os aspectos teatrais e rituais do social tornem á evidente o que há de oblíquo, simulado e distinto em qualquer interação."