O estudo do consumo nas ciências sociais contemporâneas (Cultura, consumo e identidade), BARBOSA, CAMPBELL
Presente em nosso cotidiano, o consumo é frequentemente assunto despercebido, porém estamos sempre consumindo os mais diversos tipos de bens e serviços, mesmo quando não participamos do processo produtivo (desempregados, estudantes, crianças, adolescentes, aposentados e doentes). Nas sociedades contemporâneas, o valor do trabalho é moralmente superior ao do consumo.
Há uma ambivalência na definição de "consumo": um sentido negativo de esgotamento (do latim consumere) dos bens materiais e recursos ambientais, e outro, positivo, de consumação (em inglês, consommation), adição ou realização, criação de sentido. Esses dois lados do consumo andam juntos.
"Nas duas últimas décadas, as ciências sociais passaram a tratar os processos de reprodução social e construção de identidades quase como 'sinônimos' de consumo" (p. 23).
"Atualmente, o uso, a fruição, a ressignificação de bens e serviços, que sempre corresponderam a experiencias culturais percebidas como ontologicamente distintas, foram agrupadas sob o rótulo de 'consumo' e interpretadas por esse ângulo. Assim, ao 'customizarmos' uma roupa, ao adotarmos determinado tipo de dieta alimentar, ao ouvirmos determinado tipo de música, podemos estar tanto 'consumindo', no sentido de uma experiência, quando 'construindo', por meio de produtos, uma determinada identidade, ou ainda nos 'autodescobrindo' ou 'resistindo' ao avanço do consumismo em nossas vidas, como sugerem os teóricos dos estudos culturais" (p. 23)
O consumo tem designado quase todos os mecanismos e processos sociais em que estamos envolvidos. Ao estendermos o significado de consumo, estamos utilizando-o para classificar dimensões da nossa vida social a partir de uma nova perspectiva. Mas a importância atribuída ao consumo deve ser vista com cautela, pois continuam sendo importantes na demarcação de fronteiras entre grupos e na construção de identidades, como a cidadania, filiação religiosa, tradição e desempenho individual. A produção e o trabalho continuam desempenhando papel tão ou mais importante que o consumo.
"As relações de produção por trás de uma mercadoria são partes integrantes daquilo que é oferecido no mercado em um processo de 'comoditização' e consumo crescente das relações de produção" (p. 25)
> obs.: ética hedonista de trabalho predomina e define justamente os segmentos que se diz fazerem do consumo seu principal mecanismo de reprodução social: intelectuais, classe média, yupies, profissionais liberais <
"não se trata mais de 'quem compra o que', mas, como aponta Wardel (1997), quem obtém o que, em que condições de acesso, e que uso se faz das coisas assim adquiridas" (p. 26)
Mas vale frisar que, para economistas e profissionais de marketing, consumo é apenas um "processo individual, quantificável, de satisfação de necessidades individuais bem definidas" (p. 26)
"Assim, na sociedade contemporânea, consumo é ao mesmo tempo um processo social que diz respeito a múltiplas formas de provisão de bens e serviços e a diferentes formas de acesso a esses mesmos bens e serviços; um mecanismo social percebido pelas ciências sociais como produtor de sentidos e de identidades, independentemente da aquisição de um bem; uma estratégia utilizada no cotidiano pelos mais diferentes grupos sociais para definir diversas situações em termos de direitos, estilo de vida e identidades; e uma categoria central na definição da sociedade contemporânea." (p.26)
CONSUMO ENQUANTO EXPERIÊNCIA
Afinal.. qual a natureza da experiência de consumo quando ele se trata do prazer estético de um pôr-de-sol, ou de mostrar uma garrafa de vinho raro aos amigos, ou de ler um livro, quando o comparamos as outras, em que bens e serviços são exauridos?
> obs: e o consumo é hoje, antes de tudo, experiência, como muitos afirmam, em que medida essa experiência é singular e específica em relação a outros tipos de experiência? Campbell discute a ideia de subjetivação de experiencia cotidiana, de modo que não existem mais eventos objetivos <
"Os processos, atividades, itens e atores envolvidos são tão heterogêneos que as abordagens generalizantes não conseguem explicá-los. O que se pode afirmar, por exemplo, sobre moda e roupas não se aplica à comida e à alimentação, e muito menos à música, embora o consumo nas três áreas envolva processos de 'produção social de gosto'. Daí alguns autores contemporâneos trabalharem teoricamente a partir do que Fine and Leopold (1993) denominaram 'sistemas de consumo', que implicam a compreensão dos processos de produção, distribuição e comercialização de cada bem e serviço analisado para poder explicar seu consumo" (p. 28)
Para Miller (1995), um dos motivos pelos quais os estudos do consumo foram relegados como desimportantes foi pq eles colocaram em xeque a identidade da antropologia enquanto disciplina construída em cima da diferença e da alteridade. O outro era visto como encarcerado em uma cultura holística e não fragmentada que a modernidade via como perdida, e ele perderia suas tradições ao conviver com as sociedades de mercado e sistemas baseados na impessoalidade e na racionalidade econômica. (p.30)
Havia um dualismo moral (p.ex. dádiva x mercadoria, troca x mercado, generosidade x interesse) e qualquer alteração nisso implicaria tanto a redefinição do primitivo quanto do próprio ocidental.
Ao encarar o consumo de massa como diversidade a posteriori (fonte de diferença que emerge de trajetórias que não se baseiam apenas na diversidade histórica passada), as formas particulares de consumo de uma região deixam de ser consideradas como continuidade ou perda de diferenças culturais.
"A modernidade é uma presença heterogênea na qual todas as sociedades inscrevem suas marcas, sem que estejam necessariamente relacionadas à 'reinvenção da tradição', à resistência, à opressão, à modernidade ou ao capitalismo" (p. 30)
Para Miller, a cultura adquire dimensão de processo ou luta através "da qual as pessoas tentam dar sentido ao mundo e reivindicar formas materiais, sociais e institucionais pelas quais nos constituímos como seres humanos..." (p. 31)
Dados sinalizam a existência de uma revolução comercial e do consumo anterior à revolução industrial. Ligada ao consumo de supérfluos. Essas três revoluções construíram o mundo moderno.
Por muito tempo, economistas mantiveram uma visão moralista sobre o consumo. Mesmo quando deixou de ser assim, o interesse sociológico no consumo permaneceu sempre imbricado à crítica moral.
"Esse repúdio moral e intelectual à dimensão material da existência que permeia o olhar ocidental sobre o consumo é revelador de uma visão ingênua e idealizada, que encara a sociedade como fruto apenas de relações sociais, como se estas pudessem existir em separado das relações materiais. E mais ainda, que vê a importância dos bens materiais para as pessoas -- o materialismo -- como um fenômeno recente, e como mais recente ainda seu uso para fins de distinção e diferenciação social. O pressuposto por trás dessa ideia é que, além de as pessoas imaginarem que é possível prescindir das relações com os objetos e ignorarem que estes sempre mediaram as relações delas com o mundo, teria existido um tempo mítico em que as pessoas só faziam uso das dimensões funcionais e utilitárias dos objetos. E, para elas, este era, certamente, um mundo mais autêntico e moralmente melhor." (p. 36)
"Do ponto de vista cultural, necessidades básicas são aquelas consideradas legítimas e cujo consumo não nos suscita culpa, pois podem ser justificadas moralmente. As supérfluas, como o próprio nome já indica, são dispensáveis e estão associadas ao excesso e ao desejo. Por conseguinte, consumi-las é ilegítimo e requer retóricas e justificativas que as enobreçam e que diminuam a nossa culpa. Mesmo na sociedade contemporânea, moderna e individualista, na qual as noções de liberdade e de escolha são valores fundamentais, sente-se a necessidade de justificar a compra de alguma forma. E este último aspecto é muito significativo, pois essa necessidade contraria o pressuposto da racionalidade econômica na aquisição de bens.
De acordo com essa lógica, para se comprar um bem basta que ele esteja disponível no mercado e que as pessoas tenham dinheiro para isso e queiram fazê-lo. Na verdade, esse processo de aquisição é bem mais complexo. Faz-se necessário que o querer e o poder econômico adquiram legitimidade moral perante os olhos de quem compra e daqueles que o cercam. É necessário que a aquisição de um bem supérfluo seja convertida em algo moral e socialmente aceitável." (p. 37)
"Todas as sociedades se reproduzem segundo uma lógica cultural específica. Ninguém come, se veste ou sobrevive genericamente, mas a partir de determinadas escolhas que antecedem esses atos e, na verdade, os constituem para serem depois modificadas por eles. A cultura não é, portanto, uma variável que se sobrepõe a um consumo básico universal e que o orienta para esta ou aquela direção. Não é um acréscimo ou uma decoração.
Hoje, muitos teóricos da 'privação' afirmam que o conceito de 'necessidades básicas' implica mais do que a simples reprodução física da existência, incluindo também o atendimento de um mínimo necessário para que um indivíduo tenha condições de ser um membro efetivo da sociedade em que vive. Elas incluem, para começar, o acesso a normas de consumo socialmente estabelecidas." (p. 38)
"O consumo implica, portanto, uma economia moral, cujos pressupostos só são discerníveis quando esmiuçamos as categorias de entendimento que informam nossas práticas e representações sociais. Além de precisarmos justificar moralmente o que consumimos, hierarquizamos os diferentes bens de forma que alguns sejam mais lícitos que outros. Embora essa hierarquização não seja rígida, mas contextual, existem significados culturais cristalizados sobre determinados bens e práticas sociais que transcendem alguns contextos e acabam por classificar as pessoas por aquilo que elas consomem. Daí a propriedade da frase de Bourdieu (1983) que o gosto classifica o classificador. Entre nós, por exemplo, é mais lícito consumir livros e CDs, de modo genérico, do que roupas, sapatos e bolsas, mesmo levando-se em conta que existe uma hierarquia para livros e CDs, que podem ser considerados mais ou menos legítimos do ponto de vista 'cultural' e 'artístico'. Mas o que importa é que, no primeiro caso, somos intelectuais e, no segundo, fúteis e vazios." (p. 40)
"É bom lembrar que grande parte do que é atribuído e associado negativamente ao consumo hoje, como a emulação, o materialismo, a competição por status e poder, a valorização da dimensão expressiva dos objetos em detrimento da funcionalidade, entre outros, já se achava presente em outros tempos e em outros mundos. (...) Portanto, para que essas associações transcendam o nível das afirmações gratuitas, faz-se necessário estabelecer e demonstrar os vínculos entre elas e o consumo contemporâneo, assim como a especificidade que adquirem na sociedade moderna. É importante saber que grande parte das afirmações sobre o consumo e a sociedade de consumo baseia-se em análises que consideram apenas os estilos de vida e as práticas de consumo de alguns grupos, e os interpretam como se estes se estendessem a toda a sociedade contemporânea" (p. 41)
"É necessário investigar as diversas modalidades que as atividades de adquirir, fruir, manipular e ressignificar bens e serviços adquirem na vida das pessoas e dos grupos sociais da sociedade moderna em oposição a outros universos sociais. E por fim, é fundamental explorar profundamente as relações entre cultura, consumo e as diversas concepções de pessoa, indivíduo, relações sociais, formas de mediação e comunidades a que o consumo está ligado no mundo contemporâneo" (p. 42)
Há uma ambivalência na definição de "consumo": um sentido negativo de esgotamento (do latim consumere) dos bens materiais e recursos ambientais, e outro, positivo, de consumação (em inglês, consommation), adição ou realização, criação de sentido. Esses dois lados do consumo andam juntos.
"Nas duas últimas décadas, as ciências sociais passaram a tratar os processos de reprodução social e construção de identidades quase como 'sinônimos' de consumo" (p. 23).
"Atualmente, o uso, a fruição, a ressignificação de bens e serviços, que sempre corresponderam a experiencias culturais percebidas como ontologicamente distintas, foram agrupadas sob o rótulo de 'consumo' e interpretadas por esse ângulo. Assim, ao 'customizarmos' uma roupa, ao adotarmos determinado tipo de dieta alimentar, ao ouvirmos determinado tipo de música, podemos estar tanto 'consumindo', no sentido de uma experiência, quando 'construindo', por meio de produtos, uma determinada identidade, ou ainda nos 'autodescobrindo' ou 'resistindo' ao avanço do consumismo em nossas vidas, como sugerem os teóricos dos estudos culturais" (p. 23)
O consumo tem designado quase todos os mecanismos e processos sociais em que estamos envolvidos. Ao estendermos o significado de consumo, estamos utilizando-o para classificar dimensões da nossa vida social a partir de uma nova perspectiva. Mas a importância atribuída ao consumo deve ser vista com cautela, pois continuam sendo importantes na demarcação de fronteiras entre grupos e na construção de identidades, como a cidadania, filiação religiosa, tradição e desempenho individual. A produção e o trabalho continuam desempenhando papel tão ou mais importante que o consumo.
"As relações de produção por trás de uma mercadoria são partes integrantes daquilo que é oferecido no mercado em um processo de 'comoditização' e consumo crescente das relações de produção" (p. 25)
> obs.: ética hedonista de trabalho predomina e define justamente os segmentos que se diz fazerem do consumo seu principal mecanismo de reprodução social: intelectuais, classe média, yupies, profissionais liberais <
"não se trata mais de 'quem compra o que', mas, como aponta Wardel (1997), quem obtém o que, em que condições de acesso, e que uso se faz das coisas assim adquiridas" (p. 26)
Mas vale frisar que, para economistas e profissionais de marketing, consumo é apenas um "processo individual, quantificável, de satisfação de necessidades individuais bem definidas" (p. 26)
"Assim, na sociedade contemporânea, consumo é ao mesmo tempo um processo social que diz respeito a múltiplas formas de provisão de bens e serviços e a diferentes formas de acesso a esses mesmos bens e serviços; um mecanismo social percebido pelas ciências sociais como produtor de sentidos e de identidades, independentemente da aquisição de um bem; uma estratégia utilizada no cotidiano pelos mais diferentes grupos sociais para definir diversas situações em termos de direitos, estilo de vida e identidades; e uma categoria central na definição da sociedade contemporânea." (p.26)
CONSUMO ENQUANTO EXPERIÊNCIA
Afinal.. qual a natureza da experiência de consumo quando ele se trata do prazer estético de um pôr-de-sol, ou de mostrar uma garrafa de vinho raro aos amigos, ou de ler um livro, quando o comparamos as outras, em que bens e serviços são exauridos?
> obs: e o consumo é hoje, antes de tudo, experiência, como muitos afirmam, em que medida essa experiência é singular e específica em relação a outros tipos de experiência? Campbell discute a ideia de subjetivação de experiencia cotidiana, de modo que não existem mais eventos objetivos <
"Os processos, atividades, itens e atores envolvidos são tão heterogêneos que as abordagens generalizantes não conseguem explicá-los. O que se pode afirmar, por exemplo, sobre moda e roupas não se aplica à comida e à alimentação, e muito menos à música, embora o consumo nas três áreas envolva processos de 'produção social de gosto'. Daí alguns autores contemporâneos trabalharem teoricamente a partir do que Fine and Leopold (1993) denominaram 'sistemas de consumo', que implicam a compreensão dos processos de produção, distribuição e comercialização de cada bem e serviço analisado para poder explicar seu consumo" (p. 28)
Para Miller (1995), um dos motivos pelos quais os estudos do consumo foram relegados como desimportantes foi pq eles colocaram em xeque a identidade da antropologia enquanto disciplina construída em cima da diferença e da alteridade. O outro era visto como encarcerado em uma cultura holística e não fragmentada que a modernidade via como perdida, e ele perderia suas tradições ao conviver com as sociedades de mercado e sistemas baseados na impessoalidade e na racionalidade econômica. (p.30)
Havia um dualismo moral (p.ex. dádiva x mercadoria, troca x mercado, generosidade x interesse) e qualquer alteração nisso implicaria tanto a redefinição do primitivo quanto do próprio ocidental.
Ao encarar o consumo de massa como diversidade a posteriori (fonte de diferença que emerge de trajetórias que não se baseiam apenas na diversidade histórica passada), as formas particulares de consumo de uma região deixam de ser consideradas como continuidade ou perda de diferenças culturais.
"A modernidade é uma presença heterogênea na qual todas as sociedades inscrevem suas marcas, sem que estejam necessariamente relacionadas à 'reinvenção da tradição', à resistência, à opressão, à modernidade ou ao capitalismo" (p. 30)
Para Miller, a cultura adquire dimensão de processo ou luta através "da qual as pessoas tentam dar sentido ao mundo e reivindicar formas materiais, sociais e institucionais pelas quais nos constituímos como seres humanos..." (p. 31)
Dados sinalizam a existência de uma revolução comercial e do consumo anterior à revolução industrial. Ligada ao consumo de supérfluos. Essas três revoluções construíram o mundo moderno.
Por muito tempo, economistas mantiveram uma visão moralista sobre o consumo. Mesmo quando deixou de ser assim, o interesse sociológico no consumo permaneceu sempre imbricado à crítica moral.
"Esse repúdio moral e intelectual à dimensão material da existência que permeia o olhar ocidental sobre o consumo é revelador de uma visão ingênua e idealizada, que encara a sociedade como fruto apenas de relações sociais, como se estas pudessem existir em separado das relações materiais. E mais ainda, que vê a importância dos bens materiais para as pessoas -- o materialismo -- como um fenômeno recente, e como mais recente ainda seu uso para fins de distinção e diferenciação social. O pressuposto por trás dessa ideia é que, além de as pessoas imaginarem que é possível prescindir das relações com os objetos e ignorarem que estes sempre mediaram as relações delas com o mundo, teria existido um tempo mítico em que as pessoas só faziam uso das dimensões funcionais e utilitárias dos objetos. E, para elas, este era, certamente, um mundo mais autêntico e moralmente melhor." (p. 36)
"Do ponto de vista cultural, necessidades básicas são aquelas consideradas legítimas e cujo consumo não nos suscita culpa, pois podem ser justificadas moralmente. As supérfluas, como o próprio nome já indica, são dispensáveis e estão associadas ao excesso e ao desejo. Por conseguinte, consumi-las é ilegítimo e requer retóricas e justificativas que as enobreçam e que diminuam a nossa culpa. Mesmo na sociedade contemporânea, moderna e individualista, na qual as noções de liberdade e de escolha são valores fundamentais, sente-se a necessidade de justificar a compra de alguma forma. E este último aspecto é muito significativo, pois essa necessidade contraria o pressuposto da racionalidade econômica na aquisição de bens.
De acordo com essa lógica, para se comprar um bem basta que ele esteja disponível no mercado e que as pessoas tenham dinheiro para isso e queiram fazê-lo. Na verdade, esse processo de aquisição é bem mais complexo. Faz-se necessário que o querer e o poder econômico adquiram legitimidade moral perante os olhos de quem compra e daqueles que o cercam. É necessário que a aquisição de um bem supérfluo seja convertida em algo moral e socialmente aceitável." (p. 37)
"Todas as sociedades se reproduzem segundo uma lógica cultural específica. Ninguém come, se veste ou sobrevive genericamente, mas a partir de determinadas escolhas que antecedem esses atos e, na verdade, os constituem para serem depois modificadas por eles. A cultura não é, portanto, uma variável que se sobrepõe a um consumo básico universal e que o orienta para esta ou aquela direção. Não é um acréscimo ou uma decoração.
Hoje, muitos teóricos da 'privação' afirmam que o conceito de 'necessidades básicas' implica mais do que a simples reprodução física da existência, incluindo também o atendimento de um mínimo necessário para que um indivíduo tenha condições de ser um membro efetivo da sociedade em que vive. Elas incluem, para começar, o acesso a normas de consumo socialmente estabelecidas." (p. 38)
"O consumo implica, portanto, uma economia moral, cujos pressupostos só são discerníveis quando esmiuçamos as categorias de entendimento que informam nossas práticas e representações sociais. Além de precisarmos justificar moralmente o que consumimos, hierarquizamos os diferentes bens de forma que alguns sejam mais lícitos que outros. Embora essa hierarquização não seja rígida, mas contextual, existem significados culturais cristalizados sobre determinados bens e práticas sociais que transcendem alguns contextos e acabam por classificar as pessoas por aquilo que elas consomem. Daí a propriedade da frase de Bourdieu (1983) que o gosto classifica o classificador. Entre nós, por exemplo, é mais lícito consumir livros e CDs, de modo genérico, do que roupas, sapatos e bolsas, mesmo levando-se em conta que existe uma hierarquia para livros e CDs, que podem ser considerados mais ou menos legítimos do ponto de vista 'cultural' e 'artístico'. Mas o que importa é que, no primeiro caso, somos intelectuais e, no segundo, fúteis e vazios." (p. 40)
"É bom lembrar que grande parte do que é atribuído e associado negativamente ao consumo hoje, como a emulação, o materialismo, a competição por status e poder, a valorização da dimensão expressiva dos objetos em detrimento da funcionalidade, entre outros, já se achava presente em outros tempos e em outros mundos. (...) Portanto, para que essas associações transcendam o nível das afirmações gratuitas, faz-se necessário estabelecer e demonstrar os vínculos entre elas e o consumo contemporâneo, assim como a especificidade que adquirem na sociedade moderna. É importante saber que grande parte das afirmações sobre o consumo e a sociedade de consumo baseia-se em análises que consideram apenas os estilos de vida e as práticas de consumo de alguns grupos, e os interpretam como se estes se estendessem a toda a sociedade contemporânea" (p. 41)
"É necessário investigar as diversas modalidades que as atividades de adquirir, fruir, manipular e ressignificar bens e serviços adquirem na vida das pessoas e dos grupos sociais da sociedade moderna em oposição a outros universos sociais. E por fim, é fundamental explorar profundamente as relações entre cultura, consumo e as diversas concepções de pessoa, indivíduo, relações sociais, formas de mediação e comunidades a que o consumo está ligado no mundo contemporâneo" (p. 42)