"Curando as feridas", Ynestra King


Em “Curando as feridas: feminismo, ecologia e dualismo natureza/cultura”, a teórica ecofeminista Ynestra King analisa o feminismo dentro de um contexto de crise ecológica. Ela defende que o dualismo no qual se baseia a civilização ocidental, bem como a ideia de hierarquias dentro das sociedades, ancoram-se na dominação das mulheres pelos homens. “A crise ecológica está relacionada com sistemas de aversão a tudo o que é natural e feminino por parte de formuladores brancos, masculinos, ocidentais, de filosofia, tecnologia e invenções mortíferas.” (p. 127). De acordo com a autora, estão situados dentro destes sistemas de aversão tanto o capitalismo quanto o socialismo, pois ambos se baseiam no antinaturalismo e no dualismo básico natureza/cultura, que fundamenta a dominação masculina sobre as mulheres. Porém, o legado do “espírito socialista” poderia estar presente na luta de novos sujeitos, entre eles as feministas.

Em sua argumentação a favor de uma epistemologia feminista crítica que considere a ecologia, assim como de um imperativo ecofeminista e antidualista, Ynestra King desenvolve uma análise do papel desempenhado pelo dualismo natureza/cultura dentro dos estudos feministas. Avalia que foi fundamental para o feminismo liberal, característico da primeira onda do movimento, questionar a naturalização da ideia de papéis de gênero, que mantinha as mulheres excluídas da vida pública, sem direito de voto, oportunidades educacionais ou poder político. No entanto, a igualdade reivindicada tinha como objetivo estender os direitos dos homens a elas, e não promover mudanças estruturais, e foi conquistada por meio do repúdio a argumentos que considerassem suas diferenças biológicas, como a capacidade reprodutiva, e assim pudessem fortalecer algum tipo de dualismo.

Na segunda onda do feminismo, o surgimento da vertente radical do movimento abriu espaço para a possibilidade de considerar a ecologia a partir de uma perspectiva feminista, pois suas militantes e teóricas atribuíram a causa da opressão feminina à diferença biológica, e não à mera falta de oportunidades apontada pelas liberais. Sendo a própria diferenca biológica a causa da opressão sobre as mulheres, as feministas radicais adotam o conceito de patriarcado para definir a dominância dos homens na sociedade, que também fundamentaria outras formas de exploração humanas. Eles fariam isso ao identificar as mulheres com a natureza e “colocar ambas a servico de 'projetos' masculinos cuja finalidade é colocar os homens a salvo da temida natureza e da mortalidade. A ideologia que coloca as mulheres como mais próximas da natureza é essencial para um projeto desse tipo” (p.133). Seguindo essa lógica, a queda do patriarcado também provocaria a queda das opressões mantidas por ele. Porém, de acordo com Ynestra King, há uma questão que leva as feministas radicais a se dividirem em duas correntes: “é a ligacao mulher/natureza potencialmente emancipadora? Ou ela fornece um fundamento lógico para a continuada subordinação das mulheres?” (p. 134).

Cada corrente chega a conclusões opostas. Para as feministas radicais culturais, é importante que se valorize as vantagens de uma ligação mulher/natureza e as vantagens trazidas por meio dela, em uma cultura feminista separada. Já as feministas radicais racionalistas repudiam essa ligacao por que a interpretam como um retrocesso à naturalização dos estereótipos dos papéis sexuais, a um essencialismo, enquanto a emancipação das mulheres estaria na dissociação entre estas e a natureza, por isso rejeitam o que reforça diferenças de gênero ou ideias tradicionais sobre as mulheres. O que elas celebram é o acesso a direitos e espaços antes restritos aos homens e a racionalização da vida humana, uma vez que romper a associação mulher/natureza é como enfim romper a conexão entre humanidade e natureza. Simone de Beauvoir, teórica profundamente influente para a segunda onda, defende esta posição, pois considera sexismo tratar as mulheres como mais próximas da natureza do que os homens.

Já o feminismo radical cultural, ou apenas feminismo cultural, vai no sentido oposto quando enfrenta a raiz do patriarcado. Para essa corrente, no lugar de ignorar as diferenças entre homens e mulheres deve-se enfatizá-las, criar uma cultura à parte, valorizando a experiência de vida das mulheres e rejeitando o mundo masculino. No lugar de tentar se tornar parte da cultura masculina, contesta-a, e celebra a identificação da mulher com a natureza nas artes, grupos e comunidades. O problema desse posicionamento, explica a autora, é que se generalizava as experiências de poucas mulheres, que seriam vítimas universais da opressão masculina, sem abordar as diferenças existentes entre mulheres em termos de raca, classe e nacionalidade. “A conexão entre mulheres e natureza levou a uma romantização em que elas são vistas só como virtuosas e separadas de todas as vis realidades dos homens e da cultura. O problema é que a história, o poder, as mulheres e a natureza são todos bem mais complicados do que isso.” (p. 137-138)

Além disso, King afirma que ao longo dos anos 1980, sob influência do feminismo cultural, se desenvolveu com maior força algo como um “movimento da espiritualidade feminista” ou “um eclético pout-pourri de crenças e práticas” baseado no respeito à diversidade e unidade de todas as coisas vivas. Essa visão de espiritualidade também sofreu críticas, vindas de mulheres de outras tradições espirituais, como indígenas e africanas, que argumentavam que enquanto as feministas brancas ocidentais criam uma espiritualidade focada na terra e nas mulheres, elas estão lutando para defender a sua espiritualidade contra o imperialismo da racionalidade do Ocidente. As mulheres dessas culturas tradicionais buscam integrar o político ao espiritual, e, ao mesmo tempo em que se organizam politicamente para salvar suas terras, buscam disseminar seus conhecimentos tradicionais para mais pessoas. A autora reconhece que esses modelos de conhecimento são úteis para pensar além do dualismo natureza/cultura, mas deve-se evitar o risco de se tornarem “sistemas de pensamento para serem adotados ficticiamente por ocidentais brancos que querem evitar a responsabilidade de sua própria história” (p. 139).

O que Ynestra King defende é um feminismo holístico, que interligue as questões de sobrevivência pessoal e planetária. Na sua visão, em vez de escolher entre cultura e natureza, o ecofeminismo deve buscar uma reconciliacao da humanidade com a natureza, com uma práxis antidualista ou dialética que, diferente das outras teorias feministas, propõe uma compreensão do feminismo a partir de uma perspectiva ecológica e social.

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“Um feminismo ecológico requer uma teoria dinâmica do desenvolvimento da pessoa — masculina e feminina — que emerge da natureza não humana, e na qual a diferença não seja nem celebrada nem ignorada e a relação dialética entre a natureza humana e a não humana seja compreendida. A maior fraqueza do feminismo cultural é sua tendência de fundir o pessoal no político, com sua ênfase na transformação e no fortalecimento pessoais. Isso se torna extremamente óbvio na tentativa do feminismo cultural de superar a aparente oposição entre espiritualidade e política. Para essa corrente, a espiritualidade é o coração em um mundo sem coração, enquanto para as feministas socialistas é o ópio do povo. As feministas culturais formaram a “comunidade afetiva” do feminismo — com toda a energia, o potencial e os problemas de uma religião. Por vários anos, o feminismo espiritual tem sido a parte que mais cresceu no movimento de mulheres com círculos de espiritualidade muitas vezes substituindo grupos de conscientização, como o lugar eleito por elas para o fortalecimento pessoal.

Como resposta apropriada à necessidade de mistério e de atenção para a alienação pessoal num mundo excessivamente racionalizado, é um movimento vital e importante. Mas, por si mesmo, não fornece a base para uma teoria e uma práxis ecofeminista genuinamente dialética, abordando tanto a 
história como o mistério. Por essa razão, o feminismo cultural/espiritual, algumas vezes até chamado “feminismo da natureza”, não é sinônimo de ecofeminismo, pois criar uma cultura e uma política ginocêntricas é uma condição necessária, mas insuficiente para o eco feminismo. 

Curar a ruptura entre o político e o espiritual não pode ser feito à custa do repúdio ao racional ou do desenvolvimento de um programa político dinâmico, historicamente informado. Feministas socialistas têm muitas vezes ridicularizado erradamente as feministas espirituais por sua “falsa consciência”, ou seu “idealismo”. A ideia empobrecida sobre a personalidade no socialismo, que nega as dimensões qualitativas da subjetividade, é uma razão importante para que o feminismo socialista não tenha uma forte base política.

Por outro lado, muitas praticantes da espiritualidade feminista têm evitado pensar sobre política e poder, sustentando que o fortalecimento pessoal por si só é um fator suficiente para a transformação social.

Uma análise das dominações inter-relacionadas da natureza — psique e sexualidade, opressão humana e natureza não humana — e da posição histórica das mulheres em relação a essas formas de dominação são o ponto de partida da teoria ecofeminista. Partilhamos com o feminismo cultural a necessidade de uma política com coração e de uma comunidade de afeto, reconhecendo nossa ligação mútua e coma natureza não humana.” (p. 145-147)


“Nós, seres humanos reflexivos, temos que usar a plenitude de nossa sensibilidade e nossa inteligência para nos lançar intencionalmente para um outro estágio da evolução —um no qual fundiremos um novo modo de ser humano neste planeta, com um senso do sagrado, instruído por todas as formas de conhecimento, intuitiva e científica, mística e racional. É o momento em que nós, mulheres, nos reconhecemos como agentes da história— sim, até mesmo agentes singulares — e sabiamente construímos pontes para ligar os clássicos dualismos entre espírito e matéria, arte e política, razão e intuição. É a potencialidade de um reencantamento racional. Este é o projeto do ecofeminismo.” (p. 148)