A noção de fórmula e o "politicamente correto"

Anotações para complementar artigo apresentado na Intercom de 2015.


"A noção de 'fórmula' em análise do discurso", Alice Krieg-Planque

O livro investiga a razão de algumas palavras e expressões surgirem e se estabelecerem no discurso público, a ponto de se tornarem onipresentes. Essas fórmulas se fazem presentes na construção dos problemas públicos e na estruturação dos discursos políticos, midiáticos e institucionais. A autora propõe definir a comunicação como "um conjunto de habilidades relativas à antecipação das práticas de retomada, de transformação e de reformulação dos enunciados e de seus conteúdos" (p. 14).

Capítulo 1: a noção de uso é determinante no estudo de uma fórmula, pois não existe fórmula "em si", mas antes um conjunto de práticas linguageiras e de relações de poder e de opinião, em certo momento e espaço público, que gera o destino "formulaico" de uma sequência verbal.

Capítulo 4: precauções no emprego da noção, pois se trata de uma categoria gradual; o laço entre fórmula e espaço público; questionamento do papel das mídias na criação e na circulação de fórmulas.



1) Da análise do vocabulário sociopolítico à delimitação de fórmulas.

A lexicologia sociopolítica é o nome que se dá às análises de usos sociopolíticos do léxico. "Com o nome 'etimologia social', Maurice Tournier enfoca uma história das formas lexicais que entram na política, de suas significações e usos, não na perspectiva aparentemente consensual do dicionário de língua, mas na perspectiva conflituosa que caracteriza o vocabulário político, no qual os termos são portadores de representações sociais e o sentido das palavra se acumula conforme 'as necessidades sociais de consenso e de dominância'" (TOURNIER apud Krieg-Planque, p. 19)

A diferença entre esse mapeamento das análises do vocabulário sociopolítico e os trabalhos sobre fórmulas é que esta última é uma noção ligada à de uso; ela corresponde a uma utilização particular da "palavra", que faz parte da história de usos dessa palavra. É o momento em que ela se torna objeto de um uso particular, desviando do caminho antes percorrido em seus usos. (pode-se substituir "palavra" por "sintagma" ou "sequência")

Para ter certeza de que uma expressão é uma fórmula, seria necessário dispor de uma descrição dos usos dela na longa duração. As palavras, ao longo de seus usos, atravessam zonas de turbulência possíveis de circunscrever, entram em fases críticas de sua existência que podemos delinear, sejam elas pela difusão acentuada do termo, ou pela polêmica suscitada. Esse é "o fenômeno em que uma unidade lexical está no coração de um debate público".

Além desses trabalhos de lexicologia diacrônica, que analisam uma palavra na longa duração, há aqueles que capturam o momento em que "a vida" da palavra se intensifica, sua zona de turbulência. Por exemplo, um levantamento das ocorrências da palavra "intégration" no jornal Le Monde, entre 1989 e 1990: a palavra se tornou rapidamente um termo de consenso, ao mesmo tempo em que seu sentido se diluiu: "a generalização do termo 'intégration' se fez acompanhada de uma semantização bastante heterogênea". Assim, virou um slogan, palavra de ordem, uma "função performativa". O denominador comum (unidade lexical) torna possível o debate, enquanto a diversidade de significações atribuída torna possível e facilita a polêmica.

4) Propostas: as propriedades da fórmula. 

O corpus deve ser construído de modo que permita apreender a fórmula em sua historicidade discursiva, sendo necessário certa densidade temporal. Também é importante um tratamento não automatizado do corpus, para delimitar alguns tipos de descristalizações. Há, pelo menos, dois modos de cristalização que dependem da sua natureza: as cristalizações estrutural e memorial. Ao pólo das cristalizações de ordem estrutural, corresponde a "palavra" da experiência comum, enquanto ao de ordem memorial correspondem as "frases feitas" da experiência comum, a "sloganização".

A fórmula existe sempre dentro de uma sequência cristalizada bem identificável, que a condensa, porém não se deve adotar uma atitude exclusivamente formalista. "É preciso levar em conta a língua como 'condição de possibilidade' do discurso" (p. 75), pois uma língua é ao mesmo tempo um sistema autorreflexivo dotado de dupla significância, e um modo singular de produzir equívoco, ambiguidade e polissemia. Uma língua nunca equivale a outra. "A singularidade de cada língua determina, em parte, o que se diz nos discursos, como questões políticas e sociais" (p. 75).

Os sintagmas nominais com adjetivos denominais são vistos por Krieg-Planque como uma estrutura privilegiada da fórmula. "O adjetivo denominal é o lugar de uma ambiguidade por meio da qual se deixa à apreciação de interpretações diversas a natureza da relação que se estabelece entre o nome subjacente ao adjetivo e o nome regente". No que se refere à análise morfossintática, a autora defende que não se deve transformar certas frases do texto em frases gramaticalmente equivalentes, por meio de um método transformacional, pois isso seria "puxar o tapete do que o enunciado diz, porque o que é dito se diz no modo como é dito" (p. 79).

"O pertencimento morfossintático e lexical das fórmulas enquadra e autoriza o que podemos fazê-las dizer. E, no entanto, é também pelo fato dde podermos ir além dessa materialidade que se constroem sentidos, nessa instabilidade fundamental dos significados que se opõe, conforme Irène Tamba escreve, 'à rigidez fundamental dos significantes'" (p. 81).

A noção de fórmula não é uma noção linguística, apesar de a fórmula possuir uma materialidade linguística relativamente estável, localizável na cadeia do enunciado e linguisticamente descritível. Pelo fato de não existir sem os usos que a tornam uma fórmula, ela é, justamente, uma noção discursiva. Esse caráter discursivo da fórmula é o que resulta de uma certa utilização dessa sequência na língua.

A fórmula se constitui como referente social, o que traduz seu aspecto dominante, num dado momento e num dado espaço sociopolítico. Para delimitar esse referente social, deve-se recorrer às suas formulações postas no coração do espaço público.

"Como referente social, a fórmula é um signo que evoca alguma coisa para todos num dado momento", e para que isso aconteça, o signo deve ser conhecido por todos (p. 92). Ela deve ser encontrada nos mais variados tipos de discurso, se tornando um denominador comum, uma passagem obrigatória, sobre a qual os locutores tomam posição; ela se impõe com uma função de enquadramento do debate.

O caráter polêmico da fórmula é indissociável do fato de que ela constitui um referente social; ela põe algo em jogo. "É porque existe uma mesma 'arena', segundo uma metáfora bakhtiniana já muito repisada, mas ainda muito adequada, que o enfrentamento se torna possível" (p. 100). As fórmulas participam do pesos da história, esse pessoa que lastreia os destinos individuais. É porque constitui um problema, porque põe em jogo a existência das pessoas, políticos e sociais, que a fórmula é objeto de polêmica. Polemizando em torno dela, os atores-locutores não polemizam "por nada": eles polemizam por uma descrição do real". (p. 100)

Isso as diferencia dos slogans, títulos de filmes e livros, que não costumam ser portadores de problemas sociopolíticos. As mídias são os principais agentes de circulação das fórmulas.

"A polêmica pode recair sobre o reconhecimento social da fórmula. A questão consiste, então, em impor ao conjunto do espaço público o uso de uma palavra, geralmente em detrimento de uma palavra concorrente" (p. 102). Essa ideia também se relaciona ao conceito de polissemia social; o caráter polêmico da fórmula é determinado pelos seus usos, pois ela é tomada nas práticas linguageiras.


"L'opinion publique n'existe pas", Pierre Bourdieu, sobre o simples efeito de imposição de problemática.